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ESPAÇO ANADEP
Abril 2020 | Justiça & Cidadania n o 236
Desconstruindo a
tutela de indígenas
E os pensamentos tutelares
Cláudia Aguirre
Defensora Pública
Integrante da Comissão de Igualdade Étnico-racial da Anadep
A colonização em corpos, saberes e leis
s povos indígenas atravessaram e atravessam feroz
etnocídio, marcado pela expropriação de seus direitos,
instituições, tradições e culturas enquanto tais. Demais
da violência física e da exploração econômica, é preciso perceber
o que, em um nível mais abaixo – invisível – define esta experiên-
cia enquanto tal, colocando-nos diante das suas consequências
epistemológicas e jurídicas.
Boaventura de Souza Santos aponta que a tensão entre eman-
cipação social e regulação social é somente a distinção visível dos
conflitos da modernidade. Em outra camada, mais subterrânea
àquela, está a distinção entre as sociedades metropolitanas e os
territórios coloniais, sendo que, nestes últimos, aquela primeira
tensão era absolutamente inaplicável.
Quais saberes são produzidos para/deste contato entre colo-
nizadores e nativos, e a serviço de qual projeto? Maria Paula
Meneses menciona o evolucionismo como sendo a base da
“invenção do arcaico, do bárbaro”, a justificar a “imposição da
necessidade de progresso” rumo ao “desenvolvimento” da civili-
zação ocidental. Disto, surge uma geografia dos territórios colo-
niais e das metrópoles em que convivem o “passado em atraso” e
o progresso ocidental de “futuro” a ser alcançado pelos colonos.
Deste ponto de vista, os povos indígenas são tornados invi-
síveis, pois não gozam de validade em suas próprias estruturas
sociais, econômicas, ontológicas e epistemológicas. A invisibili-
dade é produzida no próprio discurso/saber em torno do “bárbaro”
O
e “atrasado” a justificar a criação de categorias
jurídicas que formalizam/conformam tal sub-
jugação – e a tutela é exemplo disto.
Assimilacionismo e tutela de indígenas
A Convenção 107 da Organização Inter-
nacional do Trabalho (OIT) de 1957, em seus
considerandos e dispositivos, deixa claro o
projeto
integracionista/assimilacionista,
segundo o qual os direitos das populações
indígenas, tribais e semitribais seriam
garantidos desde que em um contexto de
aculturação e adequação ao progresso da
comunidade nacional (art. 1º). Nessa ambiên-
cia, prevê uma política protecionista e assis-
tencialista por parte dos Estados (art. 2º), o
que é seguido pela Constituição Federal de
1967 – a qual traz o termo (pejorativo) “sil-
vícolas” e refere-se à incorporação dos povos
indígenas à comunhão nacional (artigos 4º,
IV; 8º, XVII, “o”; e 186).
Essa é uma das principais bases em que
se assenta o regime de tutela de indígenas,
outrora previsto no Estatuto do Índio (Lei nº
6001/1973). De modo geral, o que está em jogo
é o conhecimento/discurso (supostamente)
científico que, no âmbito do Direito, como
aponta Rosane Freire Lacerda, transforma
a diferença (do que é considerado “bárbaro e
atrasado”) em incapacidade, e condiciona a
capacidade dos indígenas à sua adaptação ao
paradigma ocidental prevalecente.
O Estatuto do Índio, destarte, repete
o termo “silvícolas” e prevê, em seu art. 4º,
a gradação entre índios isolados, em vias de
integração, e integrados à comunhão nacional.
Neste contexto, destina o pleno exercício dos
direitos civis somente para os índios integra-
dos e prevê, em seu art. 7º, o regime tutelar
aos índios isolados e aos em via de integra-
ção, incumbindo-o ao órgão federal “de assis-
tência aos silvícolas”. Ademais, prevê, no art.
9º, o procedimento judicial para verificação
dos requisitos de liberação do regime tutelar.
Correspondendo a isto, a Lei nº 5371/1967
(que criou a Fundação Nacional do Índio/
Funai), em seu art. 1º, parágrafo único, deter-
É necessário
reivindicar a
não-recepção,
pela nova ordem
constitucional, da
tutela e demais
dispositivos que
contradizem
a cidadania
diferenciada”
mina que a Funai terá poderes de representação ou
assistência jurídica inerentes ao regime tutelar de indí-
genas, incumbindo-lhe não só a função de gestão do
patrimônio indígena, como também de resguardo assis-
tencialista destes povos contra a “aculturação espontâ-
nea do índio, de forma que a sua evolução socioeconô-
mica se processe a salvo de mudanças bruscas”.
Podemos considerar a tutela de indígenas uma
parte fundamental do “DNA” de uma política estatal
pensada para, legal e institucionalmente, subjugar os
povos indígenas a uma espécie de ostracismo tanto
como sujeitos de direitos, quanto como agentes políti-
cos, abrindo campo para todo o tipo de ingerência esta-
tal contra a autonomia e seus modos de ser, mesmo
que lhes fossem reconhecidos direitos territoriais.
A Constituição de 1988 inaugura novo paradigma
jurídico sobre o tema e garante aos indígenas, em seus
artigos 231 e 232, o reconhecimento de sua organiza-
ção social, costumes, línguas, crenças e tradições, e o
direito originário sobre as terras que tradicionalmente
ocupam. Consagra, também, a legitimidade dos índios,
suas comunidades ou organizações, para ingressarem
em juízo para a defesa de seus direitos e interesses.
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