OPINIÃO
Abril 2020 | Justiça & Cidadania n o 236
Os limites da Democracia
A separação dos poderes é fundamental para
garantir estabilidade à democracia e restringir
eventuais tentações totalitárias
Luciano Bandeira
Presidente da OAB-RJ
A
lém de ter sido um dos maiores líde-
res da História, o Primeiro-Ministro
britânico Winston Churchill era um
grande orador e escrevia muito bem, tendo
recebido o Nobel de Literatura. Uma de suas
frases mais famosas é a que diz que “demo-
cracia é a pior forma de governo, salvo por
todas as demais formas que têm sido experi-
mentadas de tempos em tempos”.
Essa ideia da democracia como valor
inegociável, pelo menos no mundo que tem
suas bases fincadas na tradição helênica, é
recente. É consequência direta justamente
da II Guerra Mundial e do pós-guerra, do
confronto contra governos totalitários de
direita (o nazismo alemão, o fascismo italiano
e o imperialismo japonês) e da ascensão de
governos totalitários de esquerda (a Rússia
comunista e seus satélites, a China maoísta).
Pois, mesmo assim, não faltam exem-
plos na História de que em momentos de
aguda crise política, econômica ou social, a
democracia costuma ficar sob ataque. Ou
diretamente ou de forma mais dissimu-
lada, com seus pilares sendo questionados
ou minados. É o que ocorre hoje em várias
partes do mundo. A crise da democracia
liberal, da forma como a conhecemos, é um
fenômeno atual.
Nesses momentos é que precisamos cer-
rar fileiras na defesa do Estado Democrático
de Direito. Ele é um porto seguro. É a base
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que permite à sociedade enfrentar as dificuldades com
mais segurança e menos incertezas.
Curiosamente, as pessoas têm ideias e visões dis-
tintas do que é democracia. Muitas dessas visões são
reducionistas, se prendem a um detalhe ou outro, se
afastando daquilo que é essencial.
Em um discurso proferido no cemitério militar em
Gettysburg, palco de uma batalha decisiva durante a
Guerra Civil norte-americana, o Presidente Abraham
Lincoln falou em um “governo do povo, para o povo e
pelo povo”. A partir daí se cristalizou a ideia de que a
vontade do povo seria soberana dispensando, assim,
todas as outras características fundamentais de um
regime democrático.
No Brasil e fora tem se consolidado entre alguns
setores a ideia de que essa vontade popular se expressa
unicamente pelo voto direto. Portanto, a democracia se
restringiria à eleição direta de quem vai nos comandar.
E que isso só basta. Por aqui, ainda temos a tradição
sebastianista que espera um salvador da pátria para
guiar o País e resolver todos os problemas.
São equívocos graves e perigosos. Basta lembrar
que algumas das democracias ocidentais mais sólidas
não têm voto direto para escolher quem vai comandar
o país. Nos EUA o presidente é eleito por um colégio
eleitoral e nem sempre conta com a maioria dos votos
do eleitorado. Na Inglaterra, o primeiro-ministro é o
chefe de governo indicado pelo Parlamento e a chefe de
Estado é a Rainha Elizabeth II, que nunca foi submetida
a escrutínio popular.
É bem verdade que o conceito de democracia
evoluiu muito desde sua invenção na Grécia antiga
e reflete as circunstâncias políticas e sociais de
cada momento histórico. Assim como os concei-
tos que lhe embasavam. Um deles era o de cida-
dania. Cidadãos eram apenas homens, patrícios,
com posses e, portanto, com direito a voz (escravos,
mulheres e estrangeiros não contavam). Os cida-
dãos se reuniam na ágora (praça pública) para opi-
nar sobre as questões da Cidade-Estado. Essa demo-
cracia direta de caráter assembleísta só é possível
com público reduzido. Ainda sobrevive em cidades
pequenas de cantões diminutos do interior da Suíça.
A ideia de democracia caiu em desuso durante séculos.
Na Idade Média não era algo que ocupasse a mente de
filósofos e pensadores. Ela voltou com força a partir do
Século XVIII, com a emergência da burguesia no oci-
dente e o fim de monarquias absolutistas. As pessoas
deixavam de ser súditas e passavam a ser cidadãs.
Talvez o pensador mais importante para reavivar
o ideal democrático, dando-lhe mais vigor e a possi-
bilidade de ser posto em prática, foi o filósofo fran-
cês Montesquieu. Ele concebeu a teoria da separação
dos poderes, que serve de base para as democracias
modernas. Foi a forma encontrada para desconcentrar
o poder das mãos de um único dirigente.
Em sua obra mais famosa, “O Espírito das Leis”,
Montesquieu elaborou conceitos sobre formas de
governo e defendeu a divisão dos poderes em três.
Ao Executivo caberia a administração do Estado; o
Legislativo teria a função de elaborar as leis; o Judi-
ciário aplicaria e fiscalizaria o cumprimento das leis.
Nenhum deles teria prevalência sobre o outro e suas
funções limitariam excessos dos demais. Limites no
exercício do poder são outra característica de regimes
democráticos.
A legitimidade do voto de um presidente, de um
governador ou de um prefeito não é maior do que a
legitimidade daqueles eleitos para um congresso, uma
assembleia estadual ou uma câmara de vereadores. Em
certo sentido, a representatividade dessas casas é até
maior, porque até as correntes perdedoras em elei-
ções majoritárias têm assento e voz nessas esferas. Em
outras palavras, o Legislativo acaba tendo uma repre-
sentação mais abrangente da vontade popular.
No caso do Judiciário há ainda outra característica
importante. Seus representantes não passam pelo vere-
dito da urna. Nem o acesso aos tribunais, nem sua com-
posição e tampouco as promoções passam por escru-
tínio popular. Isso tudo ocorre com base em processos
de meritocracia. E há uma razão principal clara que
justifica isso. É para que juízes e magistrados trabalhem
tendo como norte apenas a Constituição e as Leis, não
sejam submetidos às pressões dos anseios populares ou
eleições periódicas. Teoricamente, magistrados e juízes
são agentes públicos, mas não são agentes políticos.
Nossa Constituição, logo no art. 2º, estabelece que
«são Poderes da União, independentes e harmônicos
entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário».
É isso que é necessário. Que os três poderes sejam
eficientes e operem com independência e harmonia
dentro de seus escopos de atuação e respeitando os
demais. A única resposta possível para uma crise na
democracia é mais democracia, nunca menos.
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