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CAPA Abril 2020 | Justiça & Cidadania n o 236 RJC – Além dos impactos na saúde e na eco- nomia, a senhora enxerga o risco de que aventuras autoritárias possam tentar se aproveitar da situação? RC – Temo que a urgência demandada na adoção de medidas que efetivamente ajudem a combater o contágio pelo vírus resulte no patrocínio de condutas e atos autoritários. É inaceitável assistir manifestações de des- caso aos métodos científicos na composição e na sustentação de políticas e programas de governo, como também as restrições à Lei de Acesso à Informação. O risco existe. Nor- berto Bobbio dizia que a regra da democracia é a publicidade, e não o segredo. 10 RJC – Quais aspectos jurídicos devem ser observa- dos para equilibrar medidas de apoio ao empresa- riado com a garantia dos direitos dos trabalhadores? Enxerga a possibilidade de extrema precarização do trabalho ou de explosão da miséria em consequência da pandemia? RC – Do ponto de vista jurídico, a Constituição Federal continua sendo o farol, e os tratados internacionais da Organização Internacional do Trabalho (OIT), subscri- tos pelo Brasil, os balizadores nas relações de trabalho. Com 40% dos trabalhadores na informalidade, sem direitos e sem renda, se os efeitos econômicos do isola- mento da população não forem contidos, não teremos apenas a precarização do trabalho, mas a explosão da miséria, com graves consequências sociais. A maneira mais adequada de enfrentar os problemas com equi- líbrio é promover o entendimento e o diálogo entre trabalhadores e empresários, através da negociação coletiva, método de autocomposição previsto na Cons- tituição e na legislação do trabalho para resolução dos conflitos trabalhistas. RJC – Apenas duas mulheres foram presidentes do IAB em 176 anos. Ainda falta muito para que as mulheres ocupem em pé de igualdade com os homens as posições de mais poder e prestígio na sociedade? RC – Inicialmente, devo dizer que estou orgulhosa por ser a segunda mulher a presidir o IAB e a primeira a ser reconduzida ao cargo para um segundo mandato con- secutivo. Tive a oportunidade de publicar na Revista Justiça & Cidadania, editada em homenagem ao Dia Internacional da Mulher, um artigo sobre a nossa par- ticipação política e a expressiva desigualdade entre homens e mulheres. Nós ainda temos um longo cami- nho a percorrer, mas precisamos reconhecer as con- quistas alcançadas em vários campos. RJC – A senhora afirmou que cresce a importância do IAB em um momento mar- cado “por atitudes fascistas do chefe do Poder Executivo”. Qual é o papel que o IAB espera cumprir nesse cenário? RC – O fascismo é um regime autoritário no qual a concentração total do poder fica nas mãos de um único chefe de governo. O dis- curso de que o Brasil deve aceitar a morte de seres humanos, na sua maioria pobres e idosos, porque a economia não pode parar durante a pandemia, revela a existência de ideias e atitudes que se assemelham a uma espécie de limpeza étnica social necessária, tal como defendiam os nazifascistas. O IAB está pronto para enfrentar tais atitudes. RJC – Já há perspectiva histórica para avaliar os efei- tos da reforma trabalhista para a advocacia brasileira? RC – A Lei nº 13.467/2017, que instituiu a reforma traba- lhista, provocou a maior mudança no ordenamento das relações de trabalho no Brasil desde 1930. Ocorreram profundos retrocessos, como o afastamento da jurisdi- ção estatal, ou seja, a criação de óbices ao acesso, que foi o que mais afetou a advocacia trabalhista. As novas altera- ções trabalhistas oferecidas pelo Governo para o enfren- tamento da crise econômica em razão da pandemia promoverão um novo impacto na Justiça do Trabalho. Serão centenas de milhares de reclamações trabalhistas questionando tais medidas. O crescimento dessas ações na Justiça do Trabalho será proporcional ao reconheci- mento da importância deste ramo especializado do judi- ciário enquanto pacificador de conflitos sociais que terão de ser dirimidos contando com a advocacia trabalhista. RJC – Liberdades democráticas e prerroga- tivas dos advogados estão em risco? RC – A imposição da defesa das liberdades democráticas nesta quadra da política nacio- nal, diante de atitudes tipicamente autoritá- rias que menosprezam princípios, garantias e direitos fundamentais assegurados na Cons- tituição Federal, é motivo de preocupação. Os advogados e advogadas são a voz do cidadão e os guardiões da ordem constitucional demo- crática. Por isso, precisam atuar de forma inde- pendente. Impõe-se defender as prerrogativas não só como direitos da advocacia, enquanto pilares do Estado Democrático de Direito. RJC – O que pode ser feito pelos advogados brasilei- ros e suas entidades de classe para se contrapor às fake news? RC – As fake news têm, invariavelmente, o objetivo de legitimar um ponto de vista ou prejudicar uma pessoa, geralmente personalidade de destaque. Nas eleições de 2018 foram largamente utilizadas, a ponto de influen- ciar decisivamente na eleição do atual presidente. Ainda que o Tribunal Superior Eleitoral tenha se dis- posto a apurar tais ocorrências, não se tem notícia, até hoje, de qualquer providência tomada com efetividade. Daí a necessidade de uma atuação firme da advocacia, no sentido de cobrar providências, de forma a reduzir os seus danosos efeitos. O discurso de que o Brasil deve aceitar a morte, na sua maioria de pobres e idosos, porque a economia não pode parar, revela ideias e atitudes que se assemelham a uma espécie de limpeza étnica social” RJC – O que dizer a esse respeito sobre os ataques à educação pública e à pesquisa científica? RC – Um país sem cultura é um país sem alma. Darcy Ribeiro dirigiu-se ao governo dos militares para, em razão da censura à liberdade de expressão e de pensamento, pre- veni-los “do muito que se poderia fazer com apoio no saber científico, e do descalabro e da pequenez do que se estava fazendo no País”. Os ataques desfechados pelo Governo contra a pesquisa, a educação e a cultura são vergo- nhosos. O IAB, sempre lastreado no Direito e na Constituição, continuará a fazer histó- ria mantendo-se na vanguarda do Direito, ao sair em defesa da educação e da cultura. 11