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O DESENVOLVIMENTO OU
A DEGRADAÇÃO DA HARMONIA
EM VALOR
Ivan Illich1
José Bové afirma uma coisa muito simples, quase óbvia, que me abriu os olhos:
“O que era gratuito agora passou a ser pago”. Permitam-me introduzir uma variação: O
que era bom foi transformado em valor. Aquilo que José Bové diz muito claramente é
uma conseqüência lógica, inevitável, se não questionarmos a idéia de valor.
Quando eu era estudante, durante sete anos tive de freqüentar aulas de latim
e redigir os meus textos nessa língua. Isso me facilitou a leitura das primeiras controvérsias universitárias, a partir do Renascimento. Pois bem, não encontro na língua
latina uma palavra sequer que traduza o conceito de valor.
Recordo que Lester Pearson me convidou para discutir as teses de Gunnar
Myrdal, que costumava citar a frase do Evangelho: “A quem tem será dado, e a quem
não tem será tirado até o que tem”. Fiquei profundamente escandalizado. Desde
então, compreendi a credibilidade do Evangelho e a sabedoria de Myrdal, que, juntamente com Keynes, apresentou algumas idéias sobre obviedades econômicas. Mas
lembro quanto minha oposição à própria idéia de desenvolvimento me deixava extremamente isolado. Interessava-me pelo tema, porque aquela era a época da invasão
da América Latina pelos “voluntários”. Voluntários que levavam consigo o modelo,
o exemplo, de homem evoluído. Foi então que Myrdal, provavelmente depois de ter
compreendido que eu estava sendo exposto a uma violência extrema, exortou-me a
eludir – evitar seria o termo mais exato – o desenvolvimento. Ainda hoje as pessoas
usam de violência para testemunhar esse desejo.
Procurei demonstrar a contraprodutividade do desenvolvimento, não
apenas a da “supermedicalização” ou dos transportes, que aumentam o tempo que
gastamos para nos deslocarmos, mas, sobretudo, a contraprodutividade cultural,
simbólica. Hoje, dezenas de livros falam dos pés como instrumentos de locomoção
subdesenvolvidos. Ficou difícil explicar que os pés são também instrumentos de enraizamento, órgãos sensitivos, como os olhos e os dedos.
1 Autor de inúmeros ensaios críticos sobre o desenvolvimento (1926-2002).
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