Pathos: revista brasileira de práticas públicas e psicopatologia | Page 53

A mesma enfermeira me informou que a médica iria atendê-la e depois iriam dar um banho nela, e se possível ela seria transferida para um hospital maior no dia seguinte, peguei o nome do hospital me despedi de Rosa e fui embora.

No caminho para a minha casa o supervisor da instituição que eu trabalho me ligou e eu disse a ele que tinha acompanhado a Rosa até o hospital. Ele me disse que não tinha certo ou errado, e me perguntou como eu estava me sentindo, eu contei o ocorrido no hospital e ele me disse que acompanharíamos o caso dela.

Na mesma semana, o assistente social e a psicóloga da instituição que eu atuo, entraram em contato com o departamento de assistência social do Hospital para o qual a Rosa foi transferida mas não conseguiram nenhuma informação, a assistente social informou que não podia dar informações por telefone, então resolvemos ir até o hospital, eu acompanhei o assistente social no dia seguinte até o hospital, uma assistente social nos recebeu, assim que nos apresentamos como serviço de abordagem de pessoas em situação rua e dissemos que estávamos lá para saber sobre o estado de saúde da Rosa, ela do lado de dentro da sala, começou a questionar em um tom arrogante e agressivo o que estávamos fazendo lá e disse: “Já que vocês não conseguem vaga em um albergue para uma pessoa idosa com a mobilidade limitada, vocês não tem o direito de pedir informações sobre ela”. Na sequência, tentamos estabelecer um diálogo, mas não foi possível, então resolvemos entrar na enfermaria e começamos procurar a Rosa, leito por leito, até que encontramos.

Ela estava deitada, aparentemente em um sono tranqüilo, as unhas continuavam feitas, o cabelo dela estava cortado, assim que chamei pelo nome dela, ela abriu os olhos expressou alegria através de um sorriso, e me disse: “Oi!” Eu perguntei como ela estava se sentindo ela, me respondeu que estava bem, nesse momento eu tirei da bolsa um batom que tinha levado para dar de presente a ela, quando eu o entreguei, ela sorriu, abriu o batom na hora e deslizou sobre os lábios, se olhou no espelho minúsculo que havia atrás do batom expressando sua vaidade, zelo e cuidado, assim foi a última vez que a vi. Esse foi nosso ultimo encontro... Na sexta feira Rosa\ Beth Carvalho faleceu.

Saí do hospital naquele dia ainda com ela viva, porém sem uma informação sobre o estado de saúde dela, informações negadas pela enfermeira que não olhou no nosso rosto, e provavelmente também não olhou para o rosto de Rosa, pela assistente social que quase nos enxotou do hospital, por não termos no momento uma vaga para Rosa em um albergue. Para o Hospital, Rosa era apenas um problema de vaga com o direito de ser negado.

Após a noticia do falecimento de Rosa, a psicóloga de onde trabalho a fim de diminuir nosso sentimento de impotência e indignação, resolveu articular os trâmites para realizar um velório e um enterro que desse um mínimo de dignidade para Rosa. Nesse processo ouvimos um comentário de uma mulher que trabalha no serviço de funerária da prefeitura, ao que ela disse: “Além de trabalhar com moradores de rua, vocês ainda precisam cuidar do enterro deles”, mas naquele momento faltavam energias para responder a altura, uma parte de nós parecia ter morrido com Rosa, sua determinação, indignação e disposição para Ser.

No atestado de óbito da Rosa, fiquei sabendo que o motivo de sua morte foi insuficiência respiratória, essa foi a única informação concreta e palpável que tivemos.

E assim foi, o primeiro caso que acompanhei, alegre e triste. Depois desse fato me questionei se estava no lugar certo? Se a indignação que senti e ainda sinto quando lembro é normal e saudável? O que em mim havia morrido junto com Rosa? Será que a aceitação não seria mais fácil? Como para muitos aparentemente é e que para mim não passa muitas vezes de alienação.

PATHOS / V. 01, n.01, 2015 52