Pathos: revista brasileira de práticas públicas e psicopatologia Volume Especial COVID-19 | Page 62

Questionamo-nos sobre o que precisaria deixar de existir para que outros aspectos pudessem surgir? Por mais estranho que possa parecer, a pandemia e a perda de certos rituais e protocolos cotidianos, ofertam-nos a chance de viver o até então reprimido. Quantos de nós, numa realidade como a cidade de São Paulo, por exemplo, em algum momento, não ficou aliviado em não precisar enfrentar horas e horas de trânsito? Quantos de nós não chegou a ouvir de alguém ou mesmo chegou a pensar, defensivamente ou não, que estavam gostando da situação de não precisar, nesse momento atual, desempenhar uma infinidade de coisas? Acreditamos que, uma parcela da população, mesmo isolada, presa e enclausurada, se sente livre de certas obrigações, de certa aceleração propiciada pela vida cotidiana de antes da pandemia. Obviamente, muitos aqui estariam lendo tais palavras e discordando de tal vivência, ao que dariam tudo para retomar as rotinas de suas vidas, outrora, por vezes, reclamada.

Rolando (2001) aponta que um ser humano lutando por sua liberdade se sujeitaria inclusive à morte se assim fosse necessário. Diante disso necessitaríamos de um indivíduo minimamente esclarecido de seu lugar subjetivo e social enquanto um sujeito de direito, autorizado a desejar e que estivesse disposto a colocar em morte seus próprios anseios, medos aprisionantes e com isso uma sustentação de seu eu no mundo.

Mas como sustentar um desejo individual e subjetivo, por vezes libertador, em um momento em que se clama socialmente por coletividade? Quantos de nós, culpados ou não, em alguma medida, já não furaram a quarentena de alguma forma? Vale ressaltar aqui que não se trata, em nenhum momento, de uma apologia a quebra de protocolos de segurança, mas sim uma humanização que tenta se aproximar de uma provável realidade interna existente em boa parte da população. Segundo Freud (1900/1996), os sintomas estariam, bem ou mal, a serviço disso, isto é, se desenvolveriam para dar conta do dito impedido de realizar-se, do reprimido.

Somos cotidianamente, em especial nesse momento de pandemia, convidados a digerir inúmeras informações, por vezes monotemáticas, formadoras de opinião. Tal manifestação levaria ao surgimento de estereótipos acerca do momento pandêmico vivido. Com isso, o dito estereótipo engessaria nosso Ser e Fazer, correndo o risco de nos tornarmos seres automatizados acerca do sentir e do pensar, nos obrigando a chegarmos a uma opinião rápida acerca do fenômeno atual vivido.

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PATHOS / V. Especial , Set. 2020 61