Pathos: revista brasileira de práticas públicas e psicopatologia Volume Especial COVID-19 | Page 61

A partir da afirmação de Kehl (2009), podemos pensar inicialmente que todas as pessoas possuem a necessidade de decifrar o mal-estar vivido, porém por vezes silenciado, ou apenas sintomaticamente falado. Entendemos que o movimento de dar voz a esse silêncio ou sintoma poderia nos levar a uma possiblidade de elaboração e transformação, tornando o inconsciente um pouco mais conhecido e decifrado.

Ao alcançarmos tais conteúdos inconscientes presentes em uma sociedade vítima de uma situação com características de assolamento mundial, poderíamos nos deparar com facetas indigestas de nosso próprio psiquismo ou até mesmo com potenciais elaborativos. Dores, revoltas, crueldade, ruína, poderiam ser presentes em nosso atual cotidiano, bem como solidariedade, responsabilidade e humanidade. Freud (1930/1996) em seu texto intitulado: O mal-estar na civilização, nos aponta caminhos possíveis de encontro psíquico:

Assim nossas possibilidades de felicidade são restringidas por nossa própria constituição. Já a infelicidade é muito menos difícil de experimentar. O sofrimento nos ameaça a partir de três direções: de nosso próprio corpo condenado à decadência e à dissolução, e que nem mesmo pode dispensar o sofrimento e a ansiedade como sinais de advertência; do mundo externo, que pode voltar-se contra nós com forças de destruição esmagadoras e impiedosas; e finalmente, de nossos relacionamentos com as outras pessoas (Freud, 1930/1996, p 84, 85).

O aspecto da morte, tanto concreta como subjetiva, por vezes é convidada a se fazer presente em tempos atuais e provavelmente não estaríamos prontos para recebê-la. Contudo, entendemos que a pandemia oferte a possibilidade também de poder permitir, simbolicamente, que certos conteúdos morram e que outros tenham uma nova chance de nascer. Nesse processo de aproximação com a morte, a vivência do vazio tende a emergir. Entretanto, é importante ressaltar a existência da diferença entre o vazio vivido pelo enlutado, aquele que vive o luto, e o melancólico, aquele acometido pela melancolia, isto é, o melancólico nos mostra um rebaixamento extraordinário de si mesmo, um enorme empobrecimento do ego. No luto é o mundo que se tornou pobre e vazio, na melancolia é o próprio ego do sujeito (Freud, 1917/1996). Caberia aqui a pergunta se a pandemia do Covid-19 teria poder de nos aproximarmos, não somente da vivência do luto, enquanto perda e vazio externo, mas também de facetas melancólicas, onde essa falta impactaria na forma como o sujeito se olha e se reconhece.

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PATHOS / V.. Especial , Set. 2020 60