Pathos: revista brasileira de práticas públicas e psicopatologia Volume 07 | Page 61

É preciso discutir o quanto o imaginário das pessoas em relação ao luto e gênero está balizado pelas réguas de um modelo tóxico de masculinidade cisheteronormativo.

Como pesquisadoras no campo das perdas e do luto, identificamos com urgência o questionamento dos discursos de gênero nesta área, tanto no que diz respeito ao embasamento dos discursos científicos em uma lógica cisheteronormativa, quanto ao fato de que estes saberes vêm sendo produzidos, historicamente, por pessoas cisgênero. Com a intenção de ampliar a discussão para além do discurso cisnormativo realizamos, no Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa em Perdas e Luto (NIPPEL/EEUSP), uma pesquisa qualitativa que deu origem à tese de doutoramento da qual este texto é recorte (Sá, 2019).

O estudo, que teve como objetivo principal compreender o processo de transição de gênero no contexto da família, evidencia que, no processo de transição de gênero, não apenas a pessoa trans, mas também seus familiares, vivenciam transições que podem desencadear sentimentos de perdas e luto. Entretanto, tais experiências de perda nem sempre estão relacionadas ao imaginário do senso comum que limita o luto à morte, menos ainda à identidade de gênero da pessoa trans. Quando sentimentos de perda e luto estão presentes na experiência, estes se apresentam fortemente relacionados e regidos pela cisheteronormatividade, que promove uma vivência mais intensa das perdas e processos desafiadores em comparação aos ganhos e descobertas de significados positivos da transição de gênero.

Nota-se que a literatura sobre perdas e luto relacionadas à população trans está em desenvolvimento e transição. A fase pioneira deste campo de estudo é marcada pela contribuição de Emerson e Rosenfeld (1996), que propõem um modelo teórico para a experiência familiar da transição de gênero similar aos estágios do luto de Kübler-Ross (1973), composto pelos estágios de negação, raiva, barganha, depressão e aceitação. Em 2002, Ellis e Eriksen incluem neste modelo a resiliência e o orgulho.

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PATHOS / V. 07, n.01, 2021 60