Pathos: revista brasileira de práticas públicas e psicopatologia 5º Volume | Page 9

A junção da moralidade com o espetáculo parece dominar a atual resposta pública aos usuários de crack naquela região de São Paulo. Enquanto em outros pontos da cidade o uso acontece de forma evidente, causando preocupações locais, é para ali, no centro, que os olhares e as câmeras se dirigem. O simbolismo do “fim da Cracolândia”, anunciado com sonoridade grave pela gestão atual, significa muito mais a execução de uma ação higienista e de repercussão midiática do que um ato efetivo de cuidado e recuperação dos direitos.

Do ponto de vista semântico, a denominação do atual programa social para a área: “Redenção”, revela muito. Com profunda conotação religiosa o termo se liga à libertação de algo que o prende, de livramento de uma situação danosa, de adesão a um plano maior que lhe apresenta um modo de viver melhor. Intimamente ligado ao conceito arcaico de caridade – onde um ser maior estende a mão a um ser decadente e o puxa para o caminho da luz – a expressão não considera o conhecimento e os saberes dos principais atingidos: os próprios usuários.

Reduzidos a corpos magros e sem brilho, envoltos em trapos e cobertores entregues nestes tempos frios, as pessoas que vivem e transitam na região não fazem parte da formulação de políticas voltadas para elas mesmas. São apenas alvos onde os dardos da experimentação são jogados e, muitas vezes, estes acabam por atingir seus pontos vitais, evidenciando a intenção camuflada de eliminação destes grupos do raio do olhar de quem frequenta a área central da maior cidade do Brasil.

Mas, mesmo diante de tudo isto, a resistência existe.

Os recentes episódios envolvendo a locomoção destes grupos de um local para outro conseguiu mobilizar uma rede de solidariedade e atuação política que fez o caso reverberar além daquelas fronteiras. Profissionais de saúde e outras áreas, ativistas, religiosos, membros de organizações não governamentais, intelectuais e outros grupos se mobilizaram e, além de buscar amenizar as dores causadas, construíram um espaço de valorização da autoestima e de participação dessas pessoas. Ali, além de trocas e construções, uma forma diferente de política é exercitada, onde o ponto de vista para a busca de solução parte da valorização humana.

A situação da Cracolândia evidencia uma forma seletiva de lidar com os usuários de drogas. A motivação está calcada no possível mal-estar que a presença deles causa, e não no uso de drogas em si. Este acontece em todos os pontos da cidade: nas periferias distantes e nos bairros nobres. A diferença está na qualidade da droga, causadora de um dano menor, e principalmente no entorno em que ela é usada. A moralidade seletiva e direcionada, no entanto, aponta o dedo para os mais distanciados do padrão exigido, tornando-os alvo da truculência e do abandono.

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PATHOS / V. 05, n.03, 2017 08