Pathos: revista brasileira de práticas públicas e psicopatologia 5º Volume | Page 8

Moralidade é uma palavra dúbia. Se por um lado revela uma forma de ver a vida e as relações, tentando normatizá-las para evitar o caos, por outro pode ser utilizada como medida de imposição, restrição, exclusão e seleção entre dignos e indignos. O atual debate sobre as drogas no Brasil parece estar apoiado nesta última concepção. O crescimento de um ambiente conservador se reflete em quase tudo o que nos rodeia, mas de forma mais intensa em questões já tradicionalmente visadas e, de modo mais drástico, em determinadas populações historicamente colocadas à margem ou apontadas como a causa dos males sociais.

Na região central de São Paulo está um quadrilátero, conhecido como Cracolândia. Ali, próxima a terrenos valorizados, propriedade de grandes empresas, se “encontrava” uma aglomeração humana de pessoas. A maioria em situação de rua, distante dos serviços públicos, cada um com uma história de vida e uma parte usuária contumaz de alguma droga, sobretudo o crack. O grupo foi crescendo e incomodando pela sua presença, chegando ao ponto de que ações do poder local tivessem que ser implantadas. O cenário estava montado para um debate amplo, mas, como tudo que acontece no Brasil atualmente, a polarização dominou o andamento das discussões. A chamada Cracolândia se tornou mais do que um local de uso de drogas ao ar livre, virou um ícone simbólico de como lidar com o uso de drogas e, além disto, uma referência sobre a forma com que os governos tratam os mais desprovidos de tudo e os renegados por todos.

Um ator fundamental na formação de uma opinião genérica sobre este assunto tem sido a mídia. Sem qualquer aprofundamento, notícias filtradas, calcadas em suposições e sem aprofundamento são jogadas diariamente à população. Desta forma, o usuário é apresentado como alguém perigoso, cuja simples presença na via pública pode acarretar um dano ao patrimônio ou à vida dos outros. A apresentação de histórias de vida, elemento jornalístico muito utilizado nestas pautas, indica quase sempre o mesmo modelo de narrativa: problemas familiares, falta de força de vontade, abandono e situação dramática. Muitas vezes, o final destes personagens acaba tendo um modelo de “salvação”, em geral apresentado por alguma organização religiosa ou por representações dos governos, assumindo um caráter caritativo. A montagem destes relatos evidencia o gosto pelo espetáculo que os meios de comunicação alimentam e parte da sociedade se delicia devorando.

PATHOS / V. 05, n.03, 2017 07

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