Pathos: revista brasileira de práticas públicas e psicopatologia 4º Volume | Page 54

Essa questão do renascimento psíquico foi o sonho que ficou em mim, pois ao escutar os pais falarem sobre o diagnóstico de autismo da filha, assim como a cisão presente no discurso deles, guardei em mim a parte saudável de Olivia. Penso que foi a minha capacidade de rêverie habilitada que me possibilitou entrar em contato com esse pensamento (Ferro, 2000). Não pude narrá-lo naquele momento, mas ele permaneceu em mim abrindo caminho para pensar nas múltiplas possibilidades de transformações que poderiam acontecer no campo emocional que estavam se formando ali, enquanto os pais narravam a história de Olívia.

A mãe se ancorava nesse diagnóstico como se ele representasse uma licença para permanecer amalgamada à filha, e o pai se autorizava a discordar da mãe, vislumbrando possibilidades de crescimento e desenvolvimento da menina.

Findadas as entrevistas com os pais e iniciado o processo terapêutico, sonhei o sonho do pai por identificar-me empaticamente com ele na condição de terceiro excluído da dupla e por acalentarmos a mesma esperança de ver Olivia alçar voo (Klein, 1955/1991b). É possível pensar que por me tornar a depositária de seu sonho, o pai apoiou-se em mim e eu, por minha vez, identifiquei-me com ele.

Nesse sentido pude refletir, ainda, nas múltiplas possibilidades de transformação que são possíveis, podendo levar a um renascimento psíquico que acontece na sala de análise por meio de ampliações, construções e reconstruções. Para Ferro (1998a), “numa análise, são infinitas as aberturas de sentido e os mundos possíveis que podem ser ativados” (p. 32).

Outro aspecto importante a ser destacado é que essa devoção da mãe por sua filha tenha favorecido a introjeção do bom objeto, pois a mãe a gratificou e ainda a gratifica. Entretanto, percebo que quando a mãe solicita ajuda procurando análise é porque também vive um sentimento ambivalente com relação à filha, uma vez que se sente incomodada por não ter vida própria e desejar que Olívia alcance algum grau de desenvolvimento e autonomia, ao mesmo tempo em que fala com a menina como se esta fosse um bebê ou uma criança de três anos. Assim, essa dupla parece vivenciar uma relação total de amor e ódio o que pode favorecer o processo de desenvolvimento da paciente.

A sessão relatada aqui apresenta o primeiro movimento de Olivia em sair da “barriga da mãe” e caminhar comigo pelo shopping em pleno mês de Natal. Ela aceita meu pedido de ajuda, quando digo não conhecer aquele lugar, e sai de perto dos pais levando consigo um brinquedo que ela denomina “tempo”.

Esse brinquedo pode ser pensado como “objeto transicional”, ela está distante fisicamente dos pais, mas eles estão simbolicamente representados pelo brinquedo. Essa vivência parece auxiliá-la a experimentar esse início de separação. (Winnicott, 1975). Isso também assinala uma possibilidade de relação de objeto que não é a extensão de si, uma possibilidade de reconhecer o outro como objeto diferente e independente. Ou seja, mesmo num funcionamento psíquico precário ou com características marcantes da posição esquizo-paranóide (Klein, 1946/1991a), nota-se uma mudança da qualidade da relação de objeto, pois, de alguma maneira, vive essa experiência em casa e na análise.

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PATHOS / V. 04, n.02, 2016 53