Pathos: revista brasileira de práticas públicas e psicopatologia 10º Volume | Page 88

“É isso mesmo. Creio que o método do Dr. Cawley, que se tornou uma chacota no meio psiquiátrico, tenha funcionado”.

Após uma breve pausa, vendo o meu silêncio digestivo, continua: “falhamos em tentar compreender a dor daquele homem. Momentos antes de seguir para a lobotomia, ele me perguntou o seguinte: ‘será que é melhor viver como um monstro ou morrer como um homem bom?’, e esta pergunta tem ecoado em minha mente desde então”.

“Hum. Então o senhor acha que ele preferiu ser lobotomizado a viver sem aquela ideação delirante que o protegia da realidade?”.

“Sim”, responde com certa expectativa, aguardando para que eu continue.

“Se foi uma escolha dele, por que o senhor se culpa tanto? O que o senhor gostaria de ter feito de diferente?”.

“Persistir no erro! Dr. Cawley desistiu dessa sua linha, abraçou a abordagem cirúrgica da neurologia, dissolveu as chacotas a seu respeito, mas acabou se suicidando há alguns anos, deixando para mim uma carta com seus arrependimentos e motivações”. Parou para respirar, tentando se acalmar um pouco. “Depois disso e de muita reflexão, penso diariamente nesta alternativa, a única que realmente me ocorre”.

“Quando assisti ao Dr. Jeremiah Naehring exaltando a lobotomia feita neste paciente, em um vídeo gravado alguns anos após o procedimento, orgulhoso daquela casca que havia ajudado a criar, não pude deixar de lamentar que a sua abordagem tivesse falhado. Agora, descubro que não falhou e encontro o senhor lamentando pelo sucesso. O senhor acredita que causou mais dor ao paciente ao tirá-lo do delírio, obrigando-o a lidar com a realidade?”.

“Ele construiu um intrincado delírio para se proteger da horrível realidade que recaiu sobre si e, apesar de acertarmos em seu tratamento e tirá-lo efetivamente daquele estado delirante, erramos em compreender o porquê da existência daquele magnífico mecanismo de defesa. Creio que não é à toa que o Dr. Naehring parecia insistir neste tema de mecanismo de defesa nas nossas discussões sobre o caso e com o paciente. Talvez ele tenha entendido o nosso paciente melhor que nós mesmos e soubesse qual era a melhor forma de tratá-lo ou, pelo menos, o que precisava ser tratado. Uma lição que me custou uma vida para aprender, mas que se não fosse extremamente teimoso, poderia ter aprendido há muitas décadas. Todos aqueles pacientes que vieram depois...”.

PATHOS / V. 10, n.03, 2019 87

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