Pathos: revista brasileira de práticas públicas e psicopatologia 10º Volume | Page 87

Σ

PATHOS / V. 10, n.03, 2019 86

“Não...” responde suspirando, resignado. “Você não está sendo rude. Creio que seja a nossa função como psiquiatras, não?” – sorri quando percebe a minha surpresa.

“Os iguais se reconhecem. Passamos a vida fazendo perguntas sobre os sentimentos e pensamentos de nossos pacientes. Com o tempo passa a ser como o respirar para nós...”.

“Mas devo me preocupar?”, insisto.

“Depende...” dá com os ombros. “Realmente não vim para cá para fugir do ar tóxico ou refletir sobre os erros do meu passado e sobre aqueles com os quais falhei.”

“Temia por isso...” e, de súbito, me lembro: “Dr. Lester Sheehan! Creio que o senhor fora citado em um dos relatos de hoje, não? O senhor e outro colega, Caw-alguma coisa...”.

“Cawley, Dr. John Cawley”, responde com surpresa pela repentina mudança do teor da conversa, mas com um sorriso, embora ainda cansado e abatido.

“Isso, Dr. John Cawley, obrigado. Aquela tentativa terapêutica de roleplay que vocês realizaram foi extraordinária!”, digo com genuíno entusiasmo.

“Um fracasso extraordinário”, corrige. Dr. Sheehan, puxando o tom para a terra, e continua: “aquele paciente veio até mim, trazido pelos colegas da polícia, por ter matado sua esposa após ela ter afogado seus três filhos em um lago. Um homem sem mais nada, sem chão, quebrado ao ponto de perder a própria realidade e criar uma substituta.”.

“Sinto muito”, digo, após ouvir o esbaforido desabafo. “Deve ter sido frustrante fazer tudo aquilo para, no final, recorrerem a uma básica lobotomia”.

“Um homem com um universo interior tão rico, repleto de vivências incríveis, testemunha dos horrores da Segunda Guerra, transformado em uma casca vazia!”. Após a explosão, retoma a resignação...

“E foi por esta falha que o senhor resolveu subir neste terraço e dar um fim à própria vida?”. Sou um pouco mais direto.

Dr. Sheehan fecha os olhos, engole em seco e balança a cabeça. “Não, creio que nos acostumemos com as nossas falhas conforme envelhecemos”. Pausa, lança um olhar, algo acusatório para a minha juventude e retoma: “Apesar de ter sido um experimento de décadas atrás, ainda não consegui me perdoar justamente por crer não haver falhado no tratamento, mas sim em entender este meu paciente”.

“Como assim?”, pergunto surpreso.