O imprevisível 2018 PD49 | Page 219

O cearense Ana Miranda Q uando me mudei para o Ceará, foi que comecei a conhe- cer o jeito de ser do cearense. O gosto pelo riso, uma certa pureza e a meiguice interioranas. Um orgulho meio heroico, uma têmpera sertaneja. Olhava para o modo de ser do cearense, querendo melhor conhecer a mim mesma, e cheguei a descobrir afinidades – conti- nuo descobrindo –, mesmo tendo sido criada longe do Ceará. Dizem que há em nós muitas coisas atávicas. Terminei a leitura de O Cearense, de Parsifal Barroso. Um livro que é resposta ao ensaio de Gilberto Freyre, “Precisa-se do Ceará”. Belo livro, todo cearense que se quer bem precisa lê-lo. Da linguagem, vejam as pérolas que recolhi, ao acaso: vasta ferradura pétrea de serras, gestos rasgados em braçadas, a since- ridade das convicções à flor da pele, anos de cansadas lutas, seus legendários artífices, o ativismo andejo, a aceitação passiva do fadário... E muitas mais. Diversas são as páginas que especulam nossos ascendentes: a interrogação sobre a prevalência do sangue ameríndio ou a predo- minância lusa, e a existência de um terceiro componente para formar a “flor amorosa das três raças tristes”, palavras de Freyre. Um “talvez” que se refere à miscigenação cigana, ainda miste- riosa. Cartas régias do século 18 determinavam o degredo de tribos ciganas preferencialmente para o Ceará. E mais: africanos negros, judeus, holandeses, franceses. O vaqueiro, o jangadeiro, o jagunço e o beato seriam os tipos mais marcantes da nossa paisagem humana. Parsifal se recusa a aceitar uma psicologia do cearense condicionada às circunstân- cias do meio geográfico ou do meio social. Mas concorda que, no Ceará, a terra e o povo sempre viveram e vivem unidos “na identidade de um mesmo e tortuoso destino”. Três mil horas de luz, sol dardejante, o ar seco e o vento renova- dor, a terra estendida para uma ferradura de serras. 217