O imprevisível 2018 PD49 | Page 142

homens e produz a harmonia de interesses conflitantes” (CH, p. 53). Mais fictícios, afirma Arendt, eram os resquícios tradicio- nais de uma já obsoleta estrutura monárquica do estado-nação que “interferiam e ainda influenciavam a conduta de classes ‘atrasadas’”. Os germes da sociedade comunística já estavam lá. A sociedade já havia devorado o político, o privado e a intimi- dade. Logo, Marx errou ao presumir que uma revolução seria a vitória da sociedade sobre a decadência do estado, e errou nova- mente ao acreditar que essa vitória representaria o surgimento do “reino da liberdade”. (CH, p. 54). Em seu último texto escrito – a Parte II, sobre O querer em A vida do espírito – Arendt ainda se refere a Marx e a essa enuncia- ção de um “reino da liberdade” como a fantasia marxista, o antigo sonho persistente do retorno à Idade de Ouro, espantosamente popular no contexto em que o Progresso era dominante. Não corres- pondia, portanto, à evocação da necessidade de parar de interpretar e, finalmente, mudar o mundo. O horizonte de um fim redentor estava irremediavelmente marcado pela “recusa de encarar qual- quer coisa ‘como é’ e na tentativa de interpretar tudo como simples estágio de algum desenvolvimento ulterior” (OT, p. 616-617). O século 19 estava marcado por essa tremenda mudança intelectual. A importância de Marx para Arendt é semelhante à de Kant. Embora vários tenham sido seus interlocutores destacados – Sócrates, Agostinho, Tocqueville, Montesquieu, Heidegger, Nietzs- che – o homem de ação havia indiscutivelmente encarado as ques- tões decisivas de seu tempo. Para Arendt, o exame das condições da vida humana em contraposição à destruição perpetrada pelo totalitarismo afirmou-se como tarefa ampla que abarcou desde a crítica à redução ao social em textos dos anos 30, à defesa do indivíduo e seu valor para a compreensão dos começos necessá- rios tão fundamentais à vida política, em contraposição à suspeita da filosofia sobre a política e a suspeita desta sobre a singulari- dade, as diferenças da esfera privada, o indivíduo. A definição do homem, sua condição de agente no mundo e no espírito após o processo de desumanização da primeira metade do século 20, é vital na filosofia política de Hannah Arendt. Para esse entendi- mento, entre a tradição e a afirmação da possibilidade de novos começos, Marx foi e é fundamental. 140 Adriana Novaes