homens e produz a harmonia de interesses conflitantes” (CH, p.
53). Mais fictícios, afirma Arendt, eram os resquícios tradicio-
nais de uma já obsoleta estrutura monárquica do estado-nação
que “interferiam e ainda influenciavam a conduta de classes
‘atrasadas’”. Os germes da sociedade comunística já estavam lá.
A sociedade já havia devorado o político, o privado e a intimi-
dade. Logo, Marx errou ao presumir que uma revolução seria a
vitória da sociedade sobre a decadência do estado, e errou nova-
mente ao acreditar que essa vitória representaria o surgimento
do “reino da liberdade”. (CH, p. 54).
Em seu último texto escrito – a Parte II, sobre O querer em
A vida do espírito – Arendt ainda se refere a Marx e a essa enuncia-
ção de um “reino da liberdade” como a fantasia marxista, o antigo
sonho persistente do retorno à Idade de Ouro, espantosamente
popular no contexto em que o Progresso era dominante. Não corres-
pondia, portanto, à evocação da necessidade de parar de interpretar
e, finalmente, mudar o mundo. O horizonte de um fim redentor
estava irremediavelmente marcado pela “recusa de encarar qual-
quer coisa ‘como é’ e na tentativa de interpretar tudo como simples
estágio de algum desenvolvimento ulterior” (OT, p. 616-617). O século
19 estava marcado por essa tremenda mudança intelectual.
A importância de Marx para Arendt é semelhante à de Kant.
Embora vários tenham sido seus interlocutores destacados –
Sócrates, Agostinho, Tocqueville, Montesquieu, Heidegger, Nietzs-
che – o homem de ação havia indiscutivelmente encarado as ques-
tões decisivas de seu tempo. Para Arendt, o exame das condições
da vida humana em contraposição à destruição perpetrada pelo
totalitarismo afirmou-se como tarefa ampla que abarcou desde a
crítica à redução ao social em textos dos anos 30, à defesa do
indivíduo e seu valor para a compreensão dos começos necessá-
rios tão fundamentais à vida política, em contraposição à suspeita
da filosofia sobre a política e a suspeita desta sobre a singulari-
dade, as diferenças da esfera privada, o indivíduo. A definição do
homem, sua condição de agente no mundo e no espírito após o
processo de desumanização da primeira metade do século 20, é
vital na filosofia política de Hannah Arendt. Para esse entendi-
mento, entre a tradição e a afirmação da possibilidade de novos
começos, Marx foi e é fundamental.
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Adriana Novaes