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EDITORIAL

CRISE , DO GREGO KRÍSIS , -EÓS , ATO DE SEPARAR (...) MOMENTO

DECISIVO .

Cascais , Joana Lopes Clemente

ACOVID-19 mergulhou o mundo num paradoxo quase indiscritível . Nunca uma definição me pareceu tão apropriada a um momento . “ Ato de separar ”, num mundo que nunca se apresentou tão díspar e tão necessitado de união . E , no entanto , a expressão máxima da solidariedade , hoje , é esse “ ato de separar ”. Quanto maior for a nossa capacidade de permanecermos separados uns dos outros , mais conseguimos proteger-nos uns aos outros . Para nós , na Helpo , um mindset particularmente contranatura . Como unir , separando ? O grande aliado deste desafio nos contextos desenvolvidos tem sido e foi para nós na Helpo , em Portugal , o digital . Os instrumentos tecnológicos que temos à disposição amparados por uma ampla gama de pacotes de banda larga de internet , permitiu uma rápida adaptação do trabalho em contexto nacional , seja do ponto de vista administrativo , seja do ponto de vista da intervenção . Mas estas afirmações estão cheias de “ no entanto ” uma vez que este modelo só é válido a partir de determinada posição na escala social . Este modelo implica acesso garantido a pressupostos que permitam o seu funcionamento : desde logo , as necessidades básicas cumpridas ( acesso a comida , água , materiais de higiene , assistência médica e medicamentosa no caso de doentes crónicos ou condições especiais ), e os meios para assegurar esse cumprimento ; depois , o acesso a qualquer tipo de meio que permita “ acompanhar ” uma relativa normalidade , a partir de uma posição de separação ou distanciamento . No caso de Portugal , televisão , computador , internet , que foram os protagonistas das pontes entre a escola , as crianças , o trabalho e os adultos . No entanto , ( eu avisei que estas afirmações estavam cravadas deles ), práticos que estamos em distanciamento , distanciemo-nos da nossa realidade e atentemos naquela

em que as pessoas apenas dispõem de meios para assegurar a supressão das suas necessidades básicas por dois ou três dias sem saírem de casa , na sua maioria não dispõem sequer de um rádio para aceder a qualquer tipo de informação e vivem em agregados familiares grandes , sem acesso a água canalizada e sem estratégia alternativa à escassez de artigos de higiene e consequente inflação do seu preço no mercado . A Helpo viu-se , nesta crise , entalada entre dois mundos que cumprem na plenitude a diretiva do distanciamento ! Um distanciamento radical nos pressupostos do funcionamento da vida quotidiana , para a esmagadora maioria das pessoas ( ainda que haja franjas de ambos os mundos em cada um dos dois ). No terreno , a proximidade fez-se , sem distanciamento , com criatividade , com os cuidados recomendados e possíveis . A Helpo ganhou novos braços de intervenção : entrou pela saúde , pela assistência alimentar , reinventou a sua relação com a escola para não deixar romper um vínculo já tão frágil entre comunidades e sistemas de ensino . E tomou para si “ momento decisivo ” como única definição desta crise . Nos contextos onde trabalhamos , para as pessoas com as quais trabalhamos , ( as que menos têm direito à vivência de uma crise pois as características do seu quotidiano aproximam-se-lhe em demasia ), este é mais um momento decisivo . Igual ao de todos os dias . Em que todos os dias são muito mais propícios do que imaginamos , a casar precocemente , a engravidar fora de horas , a sofrer de abusos , a passar fome , a perder a vida . Por tudo isto , reinventámos a intervenção e chamámos todos a atentar nas pequenas grandes crises de todos , mesmo que distantes de nós e reiterámos a recusa de definir o momento presente como “ ato de separar ”!