estar impacientes para poder arrumar tudo aquilo, apesar de não haver um único esgar que o demonstrasse. – Informe Sua Graça que não atenderei à refeição por motivos de indisposição, por favor – pediu, dirigindo-se ao servente mais próximo, enquanto se erguia com brusquidão. O caminho até aos aposentos que o Visconde lhe cedera foi feito em passadas largas e apressadas. Trancou a porta atrás de si, um hábito que impedia que fosse surpreendida por entradas inesperadas, e vasculhou o guarda-jóias onde guardara previamente o papel que o Visconde lhe fornecera.
Não demorou a encontrá-lo. Leu a morada quatro vezes, três para a decorar, uma por precaução, antes de atirar com o papel para as chamas da lareira. Não poderia permitir que a sua vida pessoal a levasse a es-quecer o plano maior em que se encontrava. Se fossem descobertos – por muita confiança que tivesse que não seriam – não podia deixar que quaisquer descuidos denunciassem a morada de uma irmã.
Ainda para mais uma que reconhecera.
Não pode haver descuidos, repetiu, abrindo a carteira que usara no dia anterior. Retirou o cartão-de-visita da relojeira, observando-o com um misto de interesse e aprovação, antes de o atirar também para as labaredas. Os cantos enrolaram-se antes de cederem completamente às chamas, o papel azulando e, finalmente, reduzindo-se a cinzas. Se aquele era o risco que Felismina corria, não admirava que lhe desagradasse ser vista como uma submersa.
Mina ergueu o olhar do livro de contas para os relógios que a rodeavam. Faltavam cinco para as seis e o cliente do dia ainda não dava mostras de estar para chegar. Voltou a concentrar-se nas colunas de lucros e gastos. Em boa verdade, só aceitara aquela operação por lhe ter sido pedida pelo Visconde d’ Arreios, conhecido de longa data, que nunca até então lhe falhara nos negócios ou na discrição. A explosão da Câmara, já há uma semana, tinha-a obrigado a suspender o negócio dos fundos: as rusgas não tinham sido inesperadas, tendo apenas começado a desaparecer dois dias antes. O foco agora parecia estar na restrição do acesso público à Câmara e aos edifícios do Palácio. O atentado a Sua Majestade havia-os deixado loucos em busca de um bode expiatório, e qualquer um que sobressaísse corria sérios riscos.
A sineta tocou no preciso momento em que os relógios bateram as seis. Mina ergueu novamente os olhos, os punhos cerrando-se.
– Pedi para não voltares aqui.
– Tenho uma marcação – respondeu prontamente Helena, a covinha formando-se com o sorriso. – Pelo Visconde d’ Arreios. Devo trancar a porta?
Mina avaliou-a por uns segundos, o cenho franzido. Acenou afirmativamente, enquanto fechava o livro de contas e o arrumava.
– Vira também a tabuleta – avisou, desaparecendo pela cortina amarela. Helena obedeceu, seguindo-a a tempo de a ver erguer um alçapão oculto no quarto dos fundos.
Um feitiço de ilusão, compreendeu. Não admirava que não se tivesse apercebido de nada de anormal na última vez que ali estivera. Seguiu as indicações de Mina, descendo pelas escadas que o alçapão ocultava. Ouviu o som abafado da tampa a ser fechada atrás de si, e sentiu a presença da outra nos passos que a seguiram. Candeias iluminavam o caminho, que desembocou num compartimento circular, arejado por condutas ocultas nas paredes. Relógios espalhavam-se pelos cantos, tantos e tão variados quanto os expostos na frente da loja, com a única diferença de nem todos se encontrarem inteiros e em funções. Uma mesa de ferro provida de almofadas destacava-se no centro do local. Helena sentiu o suor humedecer-lhe o pescoço ao observá-la.
– Despe-te da cintura para cima e deita-te.
As indicações vieram firmes, mas com uma suavidade que Mina ainda não lhe tinha demonstrado. Helena voltou a obedecer, procurando disfarçar o tremor das mãos. Deitou-se, fechando os olhos e entrelaçando as mãos sobre a barriga.
– Tenta ficar assim – corrigiu Mina, os dedos frios afastando os de Helena e colocando-lhe os braços a ladear o torso. O receio evidente da outra actuara como um amenizar das suas próprias preocupações, despertando em si os instintos de protecção que nutria por cada um que se deitava na sua mesa, confiando-lhe as suas maleitas. Vinham a ela entregando-lhe a sua saúde, buscando por um último reduto ou, quiçá, o único que tinham disponível. Enquanto estavam naquela sala, eram para ela como crianças à sua guarda, e Helena não era excepção.
Pousou-lhe os dedos sobre a pele, procurando sentir o coração. Murmurava os encantamentos que lhe permitiam ver o que estava de errado, sentindo o conhecimento fluir do corpo de Helena para si. Estava mal. Demasiado mal. Não conseguiria salvar aquele coração. Suspirou, afastando-se em direcção a um dos baús.
– Toma – disse, estendendo um frasco azulado à bruxa deitada na sua maca. – Preciso que estejas inconsciente para isto.
Helena empalideceu, sentindo a garganta fechar-se-lhe à recepção de ar.
– Estou …?
– Não há peças suficientes que possa adicionar para salvar esse coração – explicou Mina. – Da maneira como está, pode parar de bater a qualquer momento. Não lhe dou mais que alguns dias. Tiveste muita sorte até agora. Vou ter de o