Tenho uma amiga especial que conhece os sonetos clássicos como as palmas sempre frias das suas belas mãos. Chama-se Maria João De Sousa e além da amizade, temos a sorte de partilhar a vizinhança. Assim, o seu passo lento e corpo sempre esfriado e doente e a minha orgulhosa preguiça, encontram artimanhosa maneira de nos encontrarmos numa pastelaria que nos fica a 2 minutos das respectivas casas: andando, se tiver de ser, a passo de caracol, ou mesmo adormecendo, atrevidas,pelo caminho, como a convencida lebre da conhecida fábula.
Mas se hoje madrugo escrevendo sobre ela - a mulher mais desabonada com quem privo e, porém, de cabeça em riste enquanto camaradas solidários apelam na net para uns trocos que, somados, lhe tragam comida à boca e contas pagas - não é porque se tenha ultrapassado a si mesma em genialidade, plafond atingido há muitos anos, nem tão pouco é porque um qualquer benemérito encantado por artistas, um mecenas copiado das antigas casas reais a tenha lido e querido já (já é palavra de reis e de sindicatos, não é?) chamá-la para junto de si, para a sua corte (também no séc. XX e neste XXI só lhes vejo mecenas em instituições bancárias, apostadas em artistas já mais que certos no mercado de ações e prontos a valorizar-se, garantidamente, em troca da morte).
Faço-a comparecer aqui nesta noite já tardia, para dizer que a sua breve última obra, surpresa feita por dois amigos, editada há muito muito pouco tempo e igualmente poucos exemplares (50), já entrou na segunda edição! Não é o número que aparvalha as gentes das editoras, habituadas a outras quantidades, com outra força no mercado. Somos nós que rejubilamos, os poucos que lhe acedemos, apesar da sua imensidão de admiradores na net, que ela diz (desculpem a inconfidência, sou uma boca grande, mas genuína) serem mais de amores por essa forma que julgam romântica e passadista (e o que isto a enfurece!) e incapazes de perceber o que diz em versos que não são para a infância de criança comum, com ignorância ainda anexa.
Ela, como diz o breve prefácio à obra "Almas Gémeas", começou a escrever, aos 3 anos, quadras de redondilha maior e aos 7 já surpreendia com poemas como este.
Leiam A Chuva e o Gato Negro:
É meia-noite
Que ninguém se afoite a ir à janela!
A chuva cai, cai
E ai dela...
A chuva cai, cai
E vai perder-se no telhado
Onde morava o gato negro e esfomeado...
A chuva cai
Em pingos amargos e de dor
E tudo molha, e tudo estraga ao seu redor...
A chuva cai
E o velho gato negro esfomeado
Cai morto no telhado...
Mas eis que o dia chega
E tu, ó noite, vais
E o velho gato negro vai pr´ó céu dos animais...
Agora a chuva já não cai...
E o velho gato negro?
Já não se houve o seu miar
Porque o velho e negro gato
Já tem onde morar.
Gostaram, não foi? É espantoso, com 7 anos, produzir assim tal qualidade e talvez não se eu vos disser que esta menina de então privava com os amigos do seu avô, o poeta António de Sousa.
Que amigos? Na casa grande e repleta de todos os livros que lia e lia e que não são para uma idade, entravam, saiam e ficavam horas e horas a conviver - na sua presença atenta - homens que vocês conhecem, que Portugal consagrou: Vitorino Nemésio, Natália Correia, Miguel Torga...
Com o dom herdado, a curiosidade de um gato e a nata da literatura a embalar-lhe a infância e a traçar-lhe a identidade poética e estética da adolescência, seria pecado mortal, o décimo primeiro, que a Maria João de Sousa fosse menos que a maior sonetista portuguesa viva deste país.
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A Chuva e o Gato Negro