Inominável Ano 2 Inominável Nº8 | Page 70

Desta chuva

no meu peito

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Mudo de sítio os livros, os da prateleira de cima para a de baixo, os de baixo para a de cima, hoje por cores os disponho, pouco interessa o autor, de que serve o título, começo de um lado pelos brancos depois os amarelos a seguir os verdes e por aí fora, anoto numa listinha que pelo chão se alonga quantos li e quantos quedam ler, uma cruz um certo, uma cruz um certo, uns passitos para trás e fico a observá-los incómodos, noto que sabem que olho para eles, a lombada enerva-se, começam num tremelique uns contra os outros e quase que aposto que quando me vou embora um silêncio de deuses. Preciso de movimento, arrumo a casa toda, a mantita da noite anterior desengonçada agora num aprumo de rei as almofadas corretíssimos a roupa puxada para cima no devido lugar e nisto o aspirador, um chiqueiro absoluto no chão que não sei de onde vem, nos cantos onde se acumula a sujidade, ligo-o e pouco leva a que o sujeito cá de baixo dê três trolitadas no teto assinalando-me que é hora de qualquer coisa, não sei do quê, quem sabe da bola mas que bola, só se lá do estrangeiro, nem uma pessoa nos estádios de cá, dá medo aproximarmo-nos assim sozinhos de uma coisa tão imponente. Que fariam os jogadores se jogando sem gente a ver, como se comportariam, será que os movimentos seriam os mesmos, os gestos, as deslocações, pergunto-me se também se foram embora, para o campo, não mais escutando o treinador gritando mas o murmúrio do vento, a bola não artificial, as balizas não tão grandes, dois sapatos de cada lado e os postes feitos, o golo sem toque, só com a força do peito, o peito rematando com um vigor descomunal num tiro implacável ao guarda-redes, imagine-se. Tem vezes que acho a solidão bonita, dá espaço ao olho para apreender o que é incólume e o que normalmente é incólume tanto guarda lugar dentro como fora. Há tanta coisa tão mais bela quando só por nosso olho é olhada, a luzita da sala no topo da mesa que se espalha delicadamente como nunca vi, o chão mais polido, mais brilhante, as letritas dos livros quando estamos sozinhos dizem o que antes não diziam, parece que acertam em tudo, é como se o livro melhorasse quando não há mais ninguém para o ler. E lá fora tudo está tão triste mas é um triste metade belo, uma melancolia que volta e meia desperta coisas boas, olhamos para cada objeto aguçando o olho calibrando o tímpano com nova maneira de ver e de escutar. A única coisa de que sinto falta são vozes, incomoda-me a minha, não gosto de falar com ninguém a ouvir porque as palavras parecem que saem difusas, desordenadas, para onde se dirigirão, também dizem que falar sozinho é sinónimo de um parafuso a menos, por isso me calo. Raramente falo, espero toda a semana pela ocasião de me cruzar com o vizinho de baixo, tento adivinhar as horas, sinceramente não sei o que faz na rua mas é certo que de quando em vez sai e mal oiço em sussurro a porta batendo desço as escadas num rebuliço de pernas de mãos de pés e estaco imóvel olhando para ele, como boi para palácio, esperando ouvir da sua boca aquelas palavras enfurecidas mas que no peito tão boas tão suaves.

por Gonçalo Naves