Inominável Ano 2 Inominável Nº7 | Page 67

Nº 7 - Abril 2017

67

E já aconteceu, em alturas de neura (não só pelo rumo das leituras, mas pelo da vida em geral) deitar-me a desmanchar ordenações alfabéticas na ânsia de um encontro feliz, ou de recuperar uma memória de um encontro feliz com um livro.Nessas alturas encontro tesouros. Sim, aqui na minha própria casa, há livros que me lembram o beijo que recebi junto com o dito embrulhado, há títulos que me marcam porque a conjugação de palavras é tão graciosa nesse dia menos feliz, mesmo que toda a vida isso me tenha passado despercebido. E depois há aquele momento em que um livro se abre e mostra a primeira frase. E essa frase é tudo o que precisamos de ler, porque se encaixa de modo exemplar tornando o dia mais azul (é que eu gosto muito de azul, mas pode ser qualquer cor de que gostem muito). E como parar? Como não prosseguir para a frase seguinte esperando por mais azul? E sigo. Separo o livro escolhido mas sei que a escolhida sou eu, e essa ideia é tão bonita quanto tonta, pelo menos para a leitora racional que digo que sou, e levo-o para o meu canto preferido de leitura, puxo da manta e leio mais umas frases enquanto penso no chá de rooibos que vou fazer no fim do primeiro capítulo.

Começa a chover e fica tudo mais perfeito. Acendo uma vela com perfume de figo e ligo o meu candeeiro de leitura. As horas passam e o dia faz-se noite. E eu sou do livro que me escolheu e não o contrário. O livro manda e eu cedo, lendo-o com a entrega a que me obriga. Adorando cada palavra.

De vez em quando olho os livros espalhados no chão, a estante desarrumada, e o local de onde fugiu o livro que tenho nas mãos. É uma história de amor extremamente desagradável, previsível e entediante para uma leitora racional e exigente como eu. Mas quem não precisa de um colo que faça sonhar de vez em quando? Um pequeno prazer secreto que nos pode deixar escapar uma lagrimita ou duas? Devoro-o sem pensar em mais nada. E só isso, em certos momentos da existência de uma pessoa (leitora ou não) é tudo o que se pode desejar. Não pensar em mais nada.

Foto: Gil Cardoso