Fluir - nº 7 - Abril 2021 | Page 7

4 imaginar novas cores ? Capaz de nomear os últimos sinais da luz , antes da grande noite ?

Busca com a mão direita o comando do televisor , encosta-o aos óculos e encontra o botão certo , o primeiro da última fila de botões . Agora as cores em combate tomam conta do seu mundo , parecem ter adquirido um vago sentido . A dois palmos do ecrã , percebe-lhes o movimento de contínua luta pelo espaço , a recíproca invasão de lugares instáveis , como se pudessem fundir-se entre si mantendo intacto o seu núcleo , a sua cor azul , a sua cor vermelha , a sua cor lumínea .
Avançando um palmo no olhar , consegue distinguir certos contornos . Formas com a audácia e o desejo dos humanos . O desafio ao domínio do tempo , próprio dos humanos . Combatem entre elas para fintar os dois monstros : o tempo e o medo do tempo , pensa . O silvo do fim , pensa ainda . Tenta identificá-lo com uma entidade abstracta e não com o ruído agudo que desistiu de vencer , tirando as mãos dos ouvidos e o som ao televisor .
Repete o pensamento com o ritmo do verso : inimigo , irmão meu , contra a morte lutamos .
Diz o verso em voz alta . A voz a sair do coração , arbusto ardente . Guarda-o na memória de todos os versos da sua vida . Noutros tempos tê-lo-ia anotado com a caneta firme na mão esquerda , a letra inclinada no caderno , o poema a espraiar-se entre pensamento e febre . Mas o caderno foi atirado para a gaveta onde se acumulam os objectos em transição da plena luz para o lixo : a lupa que deixou de revelar-lhe as palavras , a caixa com duas cigarrilhas proibidas , o dossiê de recortes dos jornais agora pardos , inúteis folhas que o olfato repele e o tacto desdenha .
Guarda o verso e o poema vai alastrando , maré tímida , relutante na invasão da areia . Palavras desenhadas com água salgada , ligando-se custosamente umas às outras . Palavras como « coragem », « vencidos », « jovens », « dança », « íntimo », « esconder », « gume ».
Fecha os olhos para que nem as manchas o perturbem . A escuridão de fora oferece às palavras as cores que lhes faltavam . Uma paleta inteira de sentidos . Tira os óculos inúteis , que a gaveta aguarda com a paciência das coisas duráveis , as coisas que se seguem à palavra humana na resistência ao tempo . O braço esquerdo pende-lhe do braço esquerdo do cadeirão . Sucumbe ao peso dos óculos e do livro lido pela décima e última vez , prestes a ser rasgado e deitado ao lixo , sem passar pela gaveta-purgatório .
É isso que ele faz agora aos livros muito amados . Procura-os nas estantes , o tacto e as cores misturando-se na busca . Leva os olhos até às 7