Fluir - nº 7 - Abril 2021 | Page 6

Continuação da Luz

Julieta Monginho
6
Sentado no cadeirão , a dois palmos do televisor .
No ecrã decorre uma batalha , duas cores que se opõem uma à outra , nenhuma delas a cor que ele escolheu , quando lhe chamavam António , filho , mano ; muito antes de pai , paizinho , avô .
Tão maçadora , esta batalha , pensa ele , os combatentes a pisar ovos , parecem peças trôpegas num tabuleiro de xadrez . Nem sequer pretas contra brancas , cinza granizo contra cinza chumbo e já não é mau .
Desejava que o ecrã o levasse para fora do seu mundo turvo . Em vez disso , manchas anémicas em câmara lenta , nada que lhe agitasse a pulsação , que lhe devolvesse os bons tumultos . Teria até dormitado , não fosse o café depois do almoço . Quente e curto , exigira à filha , se vier água chilra volta para trás .
Volta para trás , volta para trás , repetira a filha em voz baixa , a imitar o tom peremptório . Acarinhava com um sorriso o tom do pai , repetido diariamente à mesma hora . Até se demorava na lavagem dos pratos , para ter a certeza de o ouvir protestar pelo atraso do café . Queria integrar esse tom em si não só como memória , mas como herança viva , transmissível .
Agora que a filha se ausentou até à hora do jantar , só lhe resta assistir à monótona batalha no televisor , perdidas no passado as batalhas em que foi protagonista , alvo de aplausos e vaias , alguns verdadeiros , a maioria meros exercícios de dissimulação . A batalha que mantinha consigo próprio a mais emocionante de todas , aquela em que o perigo se aproximara do abismo e a felicidade se assemelhara à queda em voo livre .
Talvez no dia seguinte a sua cor preferida regressasse à arena para combater os inimigos , com pontapés , lanças , cabeçadas . Inimigos difusos , perdidos numa palavra agreste , num esgar trocista , num gesto traidor , numa fuga calada . Um dia destes , quando estiver disposto a pôr o televisor na ordem , acompanhará um verdadeiro embate entre as manchas , incitando a sua cor , insultando a cor adversária , a voz disparada pelo coração , bala que atravesse a garganta já a explodir .
O som do televisor descreve a evolução das formações no terreno com uma excitação postiça . Ainda é cedo para prever se a cor vencedora será o cinza granizo ou o cinza chumbo , o tempo exige respeito pelo seu domínio sobre os feitos humanos .
Este relato é insuportável , pensa ainda . Antes concentrar-me nas manchas , imaginar que entra de rompante na arena um cinza elefante . Ou um elefante de outra cor . Ainda serei capaz de