Fluir - nº 7 - Abril 2021 | Page 54

54 colocados equidistantes na rua , restavam para iluminar o lugar , eles e a claridade tímida da lua em quarto crescente . Adriana ouvia o miar do gato desconhecido , com nitidez , sabia que haveria de estar escondido no canto da tralha , ou atrás dos arbustos húmidos , ou seguindo , com a curiosidade própria dos gatos , o veio de terra líquida que se movia a caminho do passeio , transportando sobras de areia e cimento . Afastou a folhagem na tentativa de o encontrar , mas o animal calou-se instantaneamente , como se não quisesse ser encontrado . Os gatos eram assim , plenos de mistério , o seu roçava-se-lhe nas pernas de cada vez que ela calçava e descalçava os sapatos , sentada no lugar dele , no cadeirão , para ir , ou para regressar , e ela contava-lhe , como lhe era possível , as suas pequenas aventuras , ou dava-lhe a sentir as batidas silenciosas do seu coração . Adaptou os olhos à falta de visibilidade dentro do cenário escuro e , a cada passo cauteloso que ia dando , julgou sentir na pele os suaves toques da trepadeira entrelaçada do outro lado da rua , no seu jardim confiante . Sabia , pela grande maioria dos sonhos que até ali tivera , que não há que recear a escuridão . O seu gato já não estava no muro quando regressou pela manhã e abriu a porta castanha , meticulosamente pintada de fresco e bem centrada na imagem de um dos espelhos .

Entrou . Pousou as chaves sobre a mesa e pendurou o xaile de tecido rude e cor de carvão , enquanto olhava com curiosidade o gato cinzento a dormitar tranquilamente entre a penumbra das almofadas da velha cadeira , colocada costas com costas com a estante em ébano , onde repousavam algumas revistas de culinária , desusadas teias de aranha e outras trivialidades do quotidiano .