Fluir - nº 7 - Abril 2021 | Page 53

primeiro em primeira , depois em segunda e depois em terceira , e lá foram roncando até ao cruzamento , até se perderem de vista e a sua sombra comprida se desvanecer totalmente . Tinham enfiado todos os seus capacetes cor de laranja dentro de um saco violeta , ou pelo menos assim se lhe revelaram as coisas , desses tons vivos , numa tarde de sol intenso que teimava em definir estupidamente as cores , sobrevalorizando-as . Mais tarde , num dos últimos momentos em que afastara a cortina para espreitar , vira atirarem com o saco para o fundo da bagagem , mas podia ter-se equivocado , os ambientes demasiado radiantes tendiam a enganá-la fantasiando a realidade .

As horas tinham passado na sua rotina habitual . Adriana meteu as chaves ao bolso .
O gato , por essa altura , já estava empoleirado no muro , com a vigília iniciada , como era seu hábito , e assim ficou , de olhos abertos e verdes , à sua espera , desde que a viu sair , até que regressou , enroscada no seu xaile de xadrez em tons de encarnado . Atravessou a estrada para espreitar melhor . Na casa amarela estava um gato , muito quieto , não era o seu , porque não tinha o seu pelo negro carvão , confundia-se-lhe o ar pardacento com o brilho cinzento da noite enluarada , mas o animal , que já tinha dado pela sua presença e esperava atentamente a sua aproximação , saltou com agilidade para o negrume do buraco entre os rododendros emaranhados um no outro , ou talvez se tivesse refugiado debaixo das tralhas do canto , ou lá muito para trás desses dois arbustos que resistiram a todas as modificações sem serem incomodados , só uma poeira residual se lhes acumulava nas folhas , de vez em quando , conforme o pó produzido nos trabalhos , mas qualquer chuva brilhante , mais ou menos intensa , era suficiente para os avivar . Adriana percorreu com o olhar o que a rodeava . Apreciou , com admiração , o trabalho bem feito . Um imóvel à beira da ruína ficara com um aspeto agradável e acolhedor , deveria apostar em arranjar a sua , pintando-a , talvez de branco . Se todos os proprietários tivessem o mesmo comportamento , ficaria o bairro mais alegre e rejuvenescido . Os homens dos capacetes coloridos haviam deixado num canto sobras da velha casa , madeiras ultrapassadas , baldes de tinta vazios , fragmentos do espelho de um velho roupeiro . Não há trabalhos perfeitos e aquele pormenor descuidado , mas facilmente solucionável , não lhes retirava competência e zelo . Em pleno silêncio de bairro adormecido debaixo dos salpicos das estrelas , porque era sempre rápido , esse tempo que o sol levava a desaparecer totalmente no horizonte , desde que intercetava a terra até que era engolido por ela , atravessou a estrada lentamente , já só os candeeiros verticais ,
53