Fluir - nº 7 - Abril 2021 | Page 52

Em casa de Adriana

Edite Gonçalves
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A casita amarela em frente à sua , e de fachada idêntica porque por ali eram idênticas todas as casas , estava pintada de fresco . Tão fresca ainda estava a tinta , que o gato , ao cheirá-la , tinha encostado o nariz à parede e aparecera depois à porta da cozinha com os bigodes pintados daquela cor . O animal , de personalidade vaidosa e suscetível , ficara um pouco aborrecido com o seu ar de troça , muito bem a conhecia para ser possível perceberlhe os trejeitos , mas , fingindo uma indiferença total , percorreu metro e meio , mais coisa , menos coisa , dos motivos geométricos e carcomidos dos mosaicos , para se ir enroscar entre umas quantas almofadas desalinhadas em cima de um cadeirão de madeira velha , costas com costas com a estante verde que continha os livros de culinária , os fascículos sobre plantas ornamentais e outras minudências do quotidiano . Assim que anoitecia , saltava para o muro do quintal e ficava sobre ele , de sentinela , até à manhã seguinte , sem nunca chegar a fechar os olhos , e , invariavelmente , quando principiava a luz do dia , espreguiçava-se e iniciava uma pequena volta de reconhecimento pelo terreno circundante . Depois voltava . Hoje , o seu ritual de limpeza , humedecendo a pata com a língua e passando-a pelo focinho repetidas vezes até ele ficar completamente limpo e lustroso , haveria de ser mais trabalhoso . Duas gotas de café caíram em frente aos pés de Adriana . Foi buscar a esfregona e rapidamente tratou delas , não sem tentar , uma vez mais , remover aquela maldita mancha alaranjada , mesmo ali , dez centímetros ao lado do tapete , e que teimava em permanecer indelével , isto porque já fora absorvida há muito pelos ladrilhos do chão . Fechou a porta , que guinchou como se estivessem a exigir-lhe um trabalho muito pesado , correu as cortinas e assim manteve as coisas até o sol deixar de embater demasiado quente , daquele lado da casa . A um canto do quintal havia um monte de trastes velhos à espera de transporte para o lixo . Um espelho veneziano entalado entre duas cadeiras obsoletas e cuja superfície espelhada se encontrava carcomida pelo tempo , um alguidar sem asas e cheio de sobras de folhas e água da chuva , sobrevoado constantemente por um sem número de mosquitos quase invisíveis , mas que se percebiam muito bem nos poentes mais luminosos sob a forma de nuvem trémula e transparente . Uma buganvília por podar espalhava uma bonita desordem , com os seus braços lilases em liberdade . Vivia desencontrada de si mesma , pois tanto se agarrava às coisas e lhes trepava por cima , como se deixava suspender sobre elas . Já as luzes da rua estavam acesas quando os homens começaram a arrumar os materiais . Fizeram-no rapidamente , talvez por força da prática de todos os dias repetirem os mesmos gestos , meteram tudo na carrinha e arrancaram ,