Fluir - nº 7 - Abril 2021 | Page 5

sobre um conhecimento antigo , que jazia imerso na penumbra . Não é verdade que certas grandes descobertas se fazem acompanhar de um sentimento de familiaridade , de uma espécie de revisitação ? É o sentimento que Proust tão bem descreve a propósito de Swann perante uma frase maravilhosa de uma sonata de Vinteuil .

Swann , por conseguinte , tinha razão ao acreditar que a frase da sonata existia realmente . É certo que , humana desse ponto de vista , ela pertencia , porém , a uma ordem de criaturas sobrenaturais e que nunca vimos , mas que apesar disso reconhecemos arrebatadamente quando algum explorador do invisível consegue captar uma , trazê-la do mundo divino a que tem acesso , para brilhar por alguns instantes acima do nosso .
E somente porque me encantam a tal ponto a ideia e a forma como Proust a exprime , tomo a liberdade , que não levarão a mal , de continuar a citá-lo :
Fora o que Vinteuil fizera com a pequena frase . Swann sentia que o compositor , com os seus instrumentos da música , se limitara a desvelá-la , a torná-la visível , a acompanhar-lhe e a respeitarlhe o desenho com uma mão tão terna , tão prudente , tão delicada e tão segura que o som se alterava a todo o momento , esbatendo-se para indicar uma sombra , revivificado quando tinha de seguir a pista de um contorno mais ousado .
Não me preocupa nada que esse sentimento possa ser – e seja , com certeza – uma ilusão . O ponto é que a arte não vive , talvez , sem essa ilusão . Sem essa experiência de uma familiaridade com uma outra ordem , que supera o efémero e o mortal . Com a sensação de que se acendeu a luz , e a luz nos devolveu a uma outra dimensão , que permanecia na obscuridade , mas não nos era inteiramente estranha . A Fluir número 7 – já a número 7 ! – vem , pois , ao mundo , sob o signo da luz , fiel ao seu objectivo e ao seu programa . De cada vez , em cada número , como um acto de pura liberdade e um acto de generosidade cultural . Não nossas – o editor , a designer : para esses , trata-se antes de actos de paixão e contínua loucura –, mas de todos os autores , os criadores , os iluminadores , que respondem ao convite .
Uma palavra para realçar - desnecessariamente - a pintura de Helena Simas , que , aderindo a este projecto , lhe permitiu a capa magnífica com que , neste número , abrimos para a luz que brilha nas trevas . Convido-os a iniciar a leitura ( seja qual for o tipo de « leitura » em causa ) destas criações de que , uma vez mais , nos sentimos muito orgulhosos . Manteremos , enquanto pudermos , esta revista , com as características que lhe elogiava alguém : « tão bela » ( e por isso obrigado Ana Cristina Marques ) e « contra a corrente ».
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