Fluir - nº 7 - Abril 2021 | Page 48

A Voz de Ginga em 1663

Ana Cristina Silva
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A morte já me assombra , mas quando os espíritos vierem buscar-me , vou poder olhá-los de frente e declarar que cumpri com honra o meu destino de rainha negra . Aves negras rondam os céus todas as noites desde há alguns dias . As aves gritam , traçando longos círculos no ar por cima da minha cubata e os gritos daqueles pássaros assustam o meu povo . Outro dia , um raio caiu em cima das mahmaba dos meus antepassados e muitos dos meus súbditos passaram a acreditar que perdi o favor dos espíritos que sempre estiveram do meu lado . Os maus presságios multiplicam-se , tudo parece uma intimação e um sinal da morte próxima . Já não me julgam abençoada como nos tempos em que lutava contra os portugueses ou contra os jagas . Mas outros prodígios contradizem esta crença e ainda há muitos que querem possuir um vaso ou um pedaço de pano em que tenha tocado para lhes servir de amuleto . As mães trazem as crianças à minha cubata para que as abençoe e existem muitos doentes que procuram na minha mão a cura . A velhice e a morte , já próximas , juntam a sua majestade à minha fama de guerreira . No entanto , a ficção oficial de que uma rainha não tem fantasmas nem receios esbarra com os meus pesadelos . Os mortos que me visitam têm muito mais nitidez do que o feiticeiro Kezi que todas as noites faz rezas . Peles de onça , de zebra e de leopardo , todas bem curtidas , moles e quentes fazem o leito que me acolhe a mim e aos meus mortos . O quarto está mergulhado numa penumbra que convida à sua entrada . Tusso e respiro ainda , de resto a minha existência mistura-se com a dos meus fantasmas . O meu filho Kanjila , o meu irmão Mbandi e a minha irmã Fungi rodeiam-me com as suas vozes e , do outro lado do mundo , chegam-me os seus murmúrios de infinita desolação . A aproximação da morte permite-me estabelecer com os espíritos dos antepassados uma estreita intimidade . Os vivos que insistem em rodear-me com os seus rostos fechados , a minha irmã Mocambo que me vai suceder , os meus familiares próximos , os meus capitães de guerra - sobretudo Jinga a Mona - os makotas , não sabem como as suas palavras deixaram de me interessar . Quando me vêm visitar viro a cabeça para o lado . Pouco falo com eles , cada frase é um esforço tremendo a que vou renunciando para melhor me concentrar no passado . A figura do meu filho Kanjila destaca-se dos outros espíritos , nítida , como quando tinha quinze anos , de sorriso radioso numa pose de guerreiro . Havia um excesso em tudo o que esse meu filho fazia – era sempre o primeiro , nas caçadas do leão , a pôrse à frente dos restantes caçadores e , contra a minha vontade , oferecia-se para combater em todas as escaramuças contra os portugueses ou contra os sobas revoltosos – mas aos quinze anos ser excessivo é uma virtude . Vi-o rejeitar os privilégios da sua condição de príncipe , a dormir no chão no meio dos guardas , a submeter o seu corpo