Fluir - nº 7 - Abril 2021 | Page 41

ou da Florença de Anatole France ou do Mississipi de Mark Twain , tudo isso são fulgores irrepetíveis . Embora alguma coisa desses fulgores ainda me visite quando releio esses autores . Nunca me desapontam .

F3 - Vivemos hoje num mundo digitalizado . A “ Fluir ” é um exemplo : sendo uma revista de Arte e Pensamento , não deixa de ser , para o bem e para o mal , uma revista digital . Encontra na tecnologia , como escritor e leitor , algo de que vale a pena tirar partido , ou vê-a como a responsável pelo desaparecimento de um mundo que as novas gerações já não compreendem : o do prazer no uso do papel , do manuscrito , do manusear do livro , do seu cheiro ?
O escritor que utiliza as novas tecnologias , para redigir e montar os seus textos , seria cego ou teimoso se negasse as suas enormes vantagens . Mas seria igualmente cego se não visse o perigo de se entregarem estas tecnologias às crianças , demasiado cedo . Quanto ao perigo de fazerem desaparecer , num futuro próximo , o livro ou as revistas em papel , sou muito céptico em relação a essas profecias : o cinema quando apareceu , foi tido como uma terrível ameaça ao teatro declamado ou musical , mas este está aí , pujante e sedutor como nunca , com a presença carnal e vital dos actores , principalmente se é incutido às crianças o hábito dele , desde a escola ( caso da Inglaterra ); depois , quando se passou do cinema mudo para o falado , os profetas da desgraça previram que isso seria o fim do cinema … mas não foi e este não fez senão crescer e atingir pináculos equiparáveis aos de quaisquer das outras artes ; a televisão , por sua vez , foi vista pelos usuais anunciadores do “ gloom ”, como perigo mortal para o cinema , mas , afinal , continuaram a viver em doce cumplicidade , sendo que o grande écran se mostrou indispensável para obras-primas como as de Kubrick , difíceis de apreciar nas dimensões de um televisor . Depois , por fim , foi o computador a ameaçar o teatro , o cinema e a televisão , mas não consta que isso se esteja a verificar . Ameaça séria , sim , o COVID , que se espera não ser algo produzido pelo homem , mas nunca se sabe , neste mundo de empresários sem escrúpulos … E , se bem se lembram , também a fotografia não matou , como se previa , a pintura do retrato e da paisagem . Os profetas da morte têm sistematicamente partido os dentes na dureza impertinente dos factos .
F4 - Que autor ou que obra recorda como os que primeiro mudaram decisiva e conscientemente a sua vida ? Deve a José Régio ter um dia dito : « É a isto que me quero dedicar »?
Devo muita coisa a José Régio , mas não isso . Quando o li pela primeira vez , tinha para aí quinze ou dezasseis anos , o veneno já estava dentro de mim . Note-se que eu não via a literatura , como uma
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