Fluir - nº 7 - Abril 2021 | Page 32

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A pele escamava em pequenos traços de sangue , entre a carne esborrachada pela pedra , pelo metal e pelo tempo , mas era impossível parar agora . Durante 10 metros correu sem parar . Voltava atrás e começava o circuito de novo . Repetindo o gesto , e lamentando-se por não ter pensado nisso antes , as pedras deslocaram-se para o ponto fraco das pulseiras de metal e num desses segundos que parecem levar horas a sobreviver , um deles ruiu . As pequenas manchas de sangue sobre a terra serenavam-na , anestesiavam-na . Sentou-se , respirou fundo , limpou o suor ao cabelo e começou a chorar . Com a fúria própria das lágrimas , levou a perna e o grilhão que não se tinha soltado até um detalhe da fraga , pontiagudo e afiado como uma lâmina que nunca perde o corte , e encetou o ricochete . Ruiu e ruiu , com as mãos cheias de nós e insaciedade , friccionando a costura da pulseira com o pedaço de pedra . Sem dar por isso , absorvida pelo cansaço derradeiro , tinha as pernas soltas . Tombou , joelhos rasgando o chão , e fechou os olhos . Os olhos seriam capazes de a trair a cada instante . O fogo soava ao longe , como se fosse o mar , mas a queimar tudo com as suas ondas . Permaneceu uns tempos nessa posição . Um pássaro numa gaiola , quando se solta sem esperar , pousa primeiro no galho que encontra mais perto e só depois pensa no caminho a tomar e descerra as asas .
Tinha as pernas soltas . Já não considerava o limite de 10 metros . Já não era preciso que circulasse no diâmetro previsto pelas mulheres . A cambalear , como se nunca tivesse caminhado antes , foi regressando ao banco de pedra a fim de verificar o que restava da água e , sobretudo , o que restava do fogo . O corpo era um corpo novo , inédito . Por reflexo , levava as mãos aos calcanhares , apalpava a pele macerada , lambia a mão e passava os dedos na pele . A caminhada pareceu durar uma vida . Com tonturas e fraqueza , abriu uma das vasilhas e começou a beber sofregamente . A água havia aquecido com o ar murcho mas nem por isso deixou de ser água .
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Quando completou 8 anos , as mulheres cortaramlhe o cabelo rente às orelhas . A trança caiu inerte sobre o solo . O cabelo crescia durante um ano de liberdade e sempre que chegava o aniversário , o ritual era repetido com cândida precisão . As tesouradas ruminavam-lhe o juízo . Os fios de cabelo que tombavam ao chão não eram desperdiçados . As mulheres guardavam numa bolsa , sem deixar nenhum de fora , todos os fios de cabelo . Eram depois levados à boca do fogo . Enjoava ao sentir o aroma do próprio cabelo a arder como um despojo de Inverno . Foi assim até os 16 anos . A partir daí , nunca mais uma tesoura