Fluir - nº 7 - Abril 2021 | Page 30

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Primeiro , com pouca firmeza , sem pressa . Depois , soluçando e perdendo a força sobre o corpo e o ânimo . Caiu sobre o chão , rachando a pele que cobre os joelhos , e soltou um grito muito alto , gutural . Gritou , gritou , gritou . Escutou a sua voz . Imaginou-se a chamar o seu bando , a sua manada . Sentiu o aroma do hálito cálido . Viu-se destemida e desarmada . Compreendeu que os pássaros não sabiam que também ela era uma criatura munida de voz e que , por isso , voaram para longe , em debandada . Atendeu o seu peito soluçando e gemendo e quando se cansou do imenso grito , íntimo e pegajoso , pôs-se de pé e cuspiu para o fogo . A grande chama não respondeu , não se importou , sequer , com o seu deslize , com a sua leviandade . Engoliu a saliva de um trago , que permaneceu vermelha-viva e incólume com os seus veios longos e incertos . Agitava-se e serpenteava em lume alto . A mulher não sabia decifrar o tom do céu e a atmosfera dava-lhe arrepios .
Com o crescer do dia veio a fome . Um apetite voraz , revoltante . Apareceu-lhe como uma nódoa negra que começa a doer muito , de forma inesperada , tornando-se protagonista em todas as decisões e vontades . Com os seus grilhões omnipresentes , foi à procura de um cacho de uvas que guardara dos veados há dias , entre uma rede corroída e um pedaço de pedra musgosa , e beliscou um bago . Estavam amargas , mas saciaram-na . Palitou as grainhas entre os dentes e soltou o cabelo para sacudir as cinzas perdidas . Suava a fio . Desejou nunca ter nascido .
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Devia ter cerca de 7 anos . Ainda não tinham caído todos os dentes e os definitivos não haviam espreitado por inteiro . A pele rangia com o sol e o rosto não era cruel . Consolava-se com maçãs rijas e framboesas suculentas e , por isso , andava com o canto dos lábios sempre tingidos . Devia ser uma tarde calma , perdida no calendário , discreta na sua profanidade . Não sabe ao certo . Rodopiava sobre a saia e a relva macia quando as mulheres surgiram . Lembra-se do cheiro da relva verde , ensopada nos pés pela manhã . Primeiro uma , depois outra , a seguir outra e outra e mais outra . Posicionaram-se as cinco num círculo imaculado . Mãos ao longo do corpo . A primeira dirigiu-lhe o punho , devagar e quase num sopro , e o seu coração palpitou de susto . Não tinha mais de 7 anos , certamente . As crianças não conhecem o medo até que o encaram pela primeira vez . Estenderam-lhe os grilhões , como numa cilada , agarraram-lhe firmemente as pernas e arrancaram-lhe , à força , o caroço da maçã dos dentes , que girava até perder a pele doce . Prenderam-lhe o cabelo solto numa trança .