Fluir - nº 7 - Abril 2021 | Page 29

se pudesse ser o fogo que ardia incessantemente . Se se transformasse no fogo poderia domar-se como quisesse e poderia dançar todas as noites e todos os dias da existência . Seria o firmamento . Seria o farol . Seria a tocha eterna . Quiçá recordá-laiam até o fim de todos os fins . Poderia alumiar até os cantos mais ocultos e cobertos de mantas opacas . Mas sempre que se perdia muito no devaneio , embriagada pelo calor e pelo ambiente , beliscava o próprio rosto e esticava as costas , girando , sobre si , como um pedaço de lenha recémcortada . Aprendera a controlar o fogo e a si mesma e habitava no limbo de ambos .

Outro dia nasceu e não se adivinhava tempestade . O horizonte igualava-se a quase todas as alvoradas e o coração batia-lhe no peito . Começavam a cair as primeiras gotas de suor da estação . Como interrompida de um sonho acordado , escutou o badalo de uma absurda explosão a várias milhas dali , formando ecos de gritos secos e trovejar de troncos e galhos a quebrar sem surdina . Não soube se era invenção sua até vir a réplica , e mesmo aí duvidou . Arregaçou as mangas do vestido , estalou os pequenos ossos das mãos e trepou ao cume do muro . De lá , a visão não era muito distinta , mas avistava-se um clarão maior , significado de uma presença momentânea de caos , pó e vísceras verdes . Sentiu a pequena cicatriz no joelho latejar , como acontecia em situações de medo profundo , e cerrou os punhos até ferir as rugas da mão latejando no mesmo compasso . Ecos de profunda ostentação giravam na crosta da terra .
Não poderia saber que imediatamente após o grande estrondo nascia um profundo silêncio , um silêncio por decifrar , inédito , irrepetível , de emboscada . Não sabia medir o tempo a não ser pela passagem do sol e da lua . Naquele instante sentiu que assistia a uma retrospectiva e que tudo o que conhecia seria agitado com pujança . O silêncio pútrido que escoltara imediatamente o caos perturbava-a como nada antes o havia feito . Bebericou mais um pouco de água , como quem toma uma seiva invencível , e tentou-se a largar o fogo . Encarou esse impulso com surpresa , mas algo a impediu . Julgou que seria a sua força de vontade , a sua devoção cega , mas arrependeu-se logo quando reviveu , com dor , os dois canudos mordendo-lhe os calcanhares . O miserável metal rijo e firme colado a uma corrente de cerca de 10 metros . Num raio de 10 metros , não mais , a mulher podia caminhar , correr , saltar , erguer-se , deitar-se , enrolar-se em caracol . O passo era-lhe proibido ultrapassada essa distância e nem mesmo os círculos que a viam rodopiar em tempos moles poderiam ampliar o caminho . Tocou com as mãos a ferver sobre os pedaços de metal que a aprisionavam ao fogo . Sentiu que os descobria pela primeira vez . Acarinhou a barriga das pernas e começou a chorar .
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