Fluir - nº 7 - Abril 2021 | Page 28

28 a fome e a mulher sentia-se cada vez mais impaciente . Começou a raspar as unhas tingidas no pescoço , engolindo em seco , perdida no mesmo horizonte . Para quem tem a missão de zelar pelo fogo , constatava , não convém sentir inquietação , nem perto disso . O fogo quer-se bem domado , como uma ovelha que obedece ao pastor , e não à mercê do seu instinto . Suspirou e controlou o esgar que se formava com a fadiga . Sabia esperar .

Não pôde precisar quantas horas passaram , mas a boca secou-se por inteira . Custava engolir , custava respirar . Devia ser fim de madrugada . Quando já sentia pequenas contracções nos joelhos e nos pulsos , por estar tanto tempo na mesma posição e a esforçar os membros com exactidão milimétrica , assomou-se o grupo de cinco mulheres . Cada uma trazia às costas uma vasilha de água , com 10 litros cada . Quase cambaleou com a chegada daquele tesouro , mas não quis mostrar-se comovida , antes perene . Endireitou-se , alisou os pequenos fios de cabelo soltos pelo hálito do fogo , e desejou a água fresca discretamente , como se fosse proibido querer estar viva . As mulheres pousaram as vasilhas no muro que servia de guarida ao banco , uma a seguir à outra , e observaram a grande fogueira , colocando-se de joelhos na terra . As chamas coloriam todos os rostos em laranja e vermelho .
Ali permaneceram , de olhos fechados , por alguns segundos . Vieram em silêncio e assim partiram , também . Os passos afastaram-se entre a caruma e os resquícios da bruma . Haviam feito um voto e não conheciam , a não ser por acaso , durante o choro , o ruído da própria voz . Quando o bando dobrou a fileira de árvores densas que se abeirava do seu posto , roçando os vestidos cândidos pelas manobras do bosque , a mulher abriu a primeira vasilha e derramou quase um terço sobre a boca , deixando verter a água com tino . Depois , num gesto de lucidez , não desperdiçou nem mais uma gota para refrescar o corpo , como tinha sonhado horas antes , e atirou mais pedaços de madeira morta para a grande fogueira , que nunca suspenderia a sua fome e nunca findaria a sua luz . As chaminés dormitavam , mais uma vez , e a manhã rompia com o canto dos primeiros pássaros . A mulher tocou muito ao de leve os lábios secos e lambeu-os deixando , depois , o dedo húmido de saliva . Deslizou com o dedo nos olhos , depois no nariz , terminando no queixo . Tentava imaginar o seu rosto esculpido em lava fértil , como um busto divino , uma estátua que permanecesse adorada em todas as eras da existência . Compreendia a sua convicção pela força do hábito , do tempo , da tradição herdada . Não compreendia porque não podia ser uma estátua de fogo . Não compreendia porque não podia ser o próprio fogo . Pensara sempre que seria tudo mais compreensível