Fluir - nº 7 - Abril 2021 | Page 27

pregara-lhe uma rasteira e derramara quase todo o conteúdo . O que restava não dava para a saciar e estar tão perto da imensa chama , por tanto tempo , desidrata e oferece à sede uma forma nova para o seu desalento . Suplicou , sempre em silêncio , que lhe trouxessem de beber . Para além de se distrair com a queda intermitente dos cepos , ia entretendo o tino com os lábios , que mordia , procurando desalinhar o tempo . Viu o sol descender até pousar no traço direito do mar e esconder-se , por fim , como um animal tímido . A mulher não tinha forças a medir para a dimensão da chama que ultrapassava a sua altura e largura , esboçando uma imensa corrente de calor à sua frente . A parca claridade do fim do dia alarmava-a , o seu corpo aflito levava-a a sacudir-se muito perante o fogo , abalada , enquanto esperava recuperar o fôlego . A repetição dos dias não era nada perante a imitação do fogo . O cabelo , bem preso acima do pescoço , cheirava a caruma doce e a bosque . Não sabia decifrar a sua cor , alterava-se conforme o dia . Escutava , bem perto , uma coruja a chirriar . O canto rompia pelo nascer da noite , como uma flecha que fazia prever a chegada do escuro maior , e a chama , segura de si e da sua medida , ardia sem parar . A mulher não se lembrava de como eram os dias antes de a fogueira ter chegado às suas mãos . Tornava-se inaceitável ganhar novas memórias , apagas as antigas , os dias eram todos pintados de fogo . Quando algo tremendamente majestoso , sublime e insolente ocupa as circunstâncias , nada mais consegue espaço para existir . Com o fogo vigiado , lá respirava de toda a azáfama , mas a água não chegara . A mulher tentou poupar a sua saliva , mais seca do que molhada , e guardá-la ao canto da boca a fim de a fazer durar mais tempo e tentando , assim , burlar a secura do seu invólucro . O rosto , enxuto como um pano velho , ruborizava à luz do fogo . Não fechava as pálpebras , não podia . Não havia vagar para dormir ou para descansar devidamente e o lume não era capaz de sobreviver sozinho , mesmo vigiado como estava . A grande fogueira não saberia o que fazer , nem por onde começar a bramar , se não contasse com a vida da mulher , entregue às chamas , ao degredo e ao segredo do escuro . O fogo tinha-lhe dito para jamais perder de vista a sua chama , como uma alma visível de fora do corpo , e a mulher cumpria-o eximiamente . Sem se fartar da quietude da paisagem , a mulher observava de novo as casas , ínfimas como pontinhos brancos , encavalitadas no fim da colina com as chaminés cuspindo fumo , e suspirava . Imaginava , na sua cabeça , largas panelas com sumarentos guisados borbulhando ao lume , salivando de aromas silvestres , e pensava nos pequenos fogos caseiros , contidos , que nasciam numa hora e morriam na outra . A noite era amena , mas a sede substituíra

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