Fluir - nº 7 - Abril 2021 | Page 26

Lava

Inês Francisco Jacob
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Havia uma mulher que nunca se havia perguntado quando é que a grande fogueira tinha começado a arder pela primeira vez . Nem porquê , nem como . Um dia nasceu , como qualquer outra mulher , depois foi crescendo e , no momento em que compreendeu as primeiras palavras , absorveu de imediato o que lhe diziam os mais velhos e consentiu o acontecimento sem o questionar : havia , ali , uma grande fogueira sempre a arder . Era preciso que a fogueira nunca parasse de arder , que não extinguisse a sua chama , que a sua labareda existisse para sempre . Naturalmente , não questionou a única verdade que conhecia .
O sol não tocava ainda a superfície do oceano . O dia despedia-se de todas as árvores , arbustos , pequenas colinas e criaturas vivas e faltava algum tempo para a despedida formal da luz . Todas as casas que conseguia ver dali tinham uma janela – a única –, virada para o mar . Essa janela oferecia luz a todos os interiores de todas as casas . Dali , conseguia ver apenas o início do mar . Reparou nisso quando , bem pousada no seu banco de pedra , auscultava as grandes fagulhas e alimentava o fogo para que não adormecesse com a brisa ou para que não se alastrasse além mato . Não sabe o que seria pior , nunca lhe tinham dado a escolher . A única lei assimilada dizia apenas que jamais se poderia apagar , ninguém referira demais danos . Assim , a mulher bem esticada no banco de onde se levantava muitas vezes , segurava um feixe de raminhos secos que lançava à chama-mãe .
Tinha madeira suficiente para cerca de 3 noites mas , por cautela , preocupava-se que ainda não tivessem chegado as outras mulheres com mais provisões . Se soubesse como multiplicar a madeira refém da chama , fá-lo-ia , mas não sabia . Ninguém sabia . De vez em quando cofiava o pescoço largando um rastilho de fuligem e a atmosfera lânguida provocava em si muita agitação . As suas mãos estavam manchadas de pequenas ilustrações chamuscadas de cinzento e preto , sobretudo nos dedos indicadores , e esfoladelas causadas pelos toros e paus que iam sendo devorados com muito apetite . Eram , todavia , mãos finas e firmes , como galhos acabados de sacudir da terra , e não paravam de mover , uma sobre a outra , o fogo vivo . Não fossem os dedos tisnados e ninguém adivinharia a sua ocupação . A grande fogueira ardia à sua frente sem vacilar . Crepitava e estalava a cada pedacinho novo de lenha que devorava , deglutindo tudo sem gratidão , e dançava à frente dos seus olhos alcançando um rol de cores quentes e inebriantes . Não pensava em mais nada . Era o fogo o protagonista de todas as horas . A mulher , por norma , não tinha fome , sabia que não tinha fome e estava bem habituada a não sucumbir a necessidades terrenas , mas a vasilha da água