Fluir - nº 7 - Abril 2021 | Page 21

Um homem que esteve nas mãos de Klaus Barbie diz no documentário de Marcel Ophüls que , quando a tortura começou , decidiu não dizer nada , nem sequer o nome . A primeira cedência que fizesse acarretaria todas as outras . Se tentasse criar de raiz uma mentira elaborada , tinha a certeza de que acabaria por se enrodilhar nela , perdendo o fio à meada . Também tu te recusas a dar um passo que seja ao encontro do cancro . Também tu te recusas a inventar uma história que albergue o cancro , onde ele se mova , de que ele seja protagonista . Admirame até que guardes na capa de cartão os papéis do IPO , que não os deixes perdidos pela casa , no meio dos jornais velhos , que não os deites fora . Amarrotados numa amálgama confusa , parecem tijolos e destroços numa ilusória barricada de rua . No fim da consulta , assinaste um termo de responsabilidade a dar-lhes o direito de vida e de morte sobre as tuas células , a confiar-lhes o direito de delimitar a parcela de ti que se tornou nociva e que é preciso extirpar . Só então , disseste-me depois , te compenetraste de que ias ser operada , apesar de já to terem dito várias vezes . Não cedes ao cancro um só palmo de terreno sem uma luta feroz . Desconfias de tudo o que te dizem . Se o teu próprio corpo te traiu , então tudo te poderá trair . O mundo deixou de ser um lugar seguro . Um tumor do tamanho de uma grainha de uva , mais pequeno , até , pode matar-te . Vasculhas o passado em busca de presságios que te poderão ter escapado , que te escaparam , certamente .

Vasculhas o presente em busca de presságios que iluminem o que vai acontecer doravante , que te orientem nas escolhas que tens de fazer . Procuras sinais tranquilizadores , uma progressão lógica , bóias de sinalização , relações de causa e efeito entre acontecimentos à primeira vista díspares , como faziam os Antigos . Como todos os guerreiros , tornaste-te supersticiosa . Na consulta de enfermagem , quinze dias depois , a enfermeira olhou para o ecrã e tornou a dizer a data errada da biópsia , dez de Maio . O erro persiste , ganhou vida própria , como o tumor . O tumor são células transviadas , enlouquecidas , comandadas por um programa informático defeituoso . O tumor é um exército nazi , não se pode negociar com ele , só há duas alternativas , resistir ou colaborar . Disseste « não , essa data está errada », tornaste a repor a verdade distraidamente , quase por desfastio , como quem emenda um avô senil ou um interrogador mal-intencionado que nos quer incriminar a todo o custo . Numa carta do IPO , comprometeram-se a operar-te no prazo de quarenta e cinco dias a partir da data da última consulta . A enfermeira disse que te iam telefonar numa quinta-feira , quase de certeza . Passo as quintas-feiras em sobressalto . Quando o teu telemóvel toca , apresso-me a pegar-lhe e atravesso a casa a correr para to levar . O telefonema não acontece . Passa-se um mês , depois um mês e uma semana . Sento-me à mesa contigo e , com ar solene , digo-te que o tempo está a passar ,
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