Fluir - nº 7 - Abril 2021 | Page 19

Semanas a fio , ignorávamos a caixa de correio . De súbito , o carteiro tornou-se outra vez o carteiro de antigamente . Toca à porta por volta das onze da manhã , meio-dia . Sei que é ele , porque toca para vários andares , faz soar as campainhas do prédio em cânone . Carrego no botão do trinco , ouço-o a entrar no prédio , fico à escuta do ruído abafado das cartas a deslizarem nas ranhuras . Espero que ele saia e desço logo , a verificar se há alguma carta do IPO . O teu cancro tornou-me mais grave , menos ligeiro . Já não posso fazer de conta que o carteiro não existe . Já não posso fazer de conta que o teu corpo é perene , que o tempo não passa por ti , que não ardes em lume brando como toda a gente . As mãos tremeram-te na primeira consulta com o cirurgião do IPO . Fizeste-me lembrar uma iraquiana sunita da tua idade que vi num documentário sobre a guerra contra o Estado Islâmico . Os soldados da milícia xiita entraram em casa dela e a câmara filmou-a de pé , no meio da sala , rodeada pelos filhos , a segurar nas mãos uma grande bandeira branca improvisada com um lençol , e as mãos tremiam-lhe , convulsas , como as tuas , e a voz ficoulhe presa na garganta , assim como a tua quando perguntaste se te iam tirar o mamilo . O cirurgião disse que não . Tranquilizou-te , assim como os soldados xiitas tranquilizaram aquela mulher : « Não tenha medo , minha senhora . Não tenha medo .» Pareceste momentaneamente indefesa . Recompuseste-te , incomodada por teres cedido ao pânico , perguntaste-lhe quando é que vais ser operada . Ele não sabia a data , ainda era cedo para isso . Aquela foi só a primeira consulta , era preciso esperar pela carta com a marcação da consulta « para decisão cirúrgica ». Mas ele disse que o teu tumor é pequeno , que cresce devagar . « Num ano , cresce um milímetro , se tanto .» Agora , no meu sonho , a cidade de altas muralhas deixou de ser o gânglio sentinela , passou a ser o tumor , na areia amarela desembarca o teu exército de células . Precisamos novamente da argúcia de Ulisses , precisamos do cavalo de Tróia . A cidade expandese aos poucos , há quem construa casas encostadas à muralha , do lado de fora . Um milímetro por ano . Dois auxiliares vestidos de branco , um homem e uma mulher , entraram na sala de espera do IPO com um carrinho de comes e bebes gratuitos , perguntaram às pessoas se queriam chá , café ou laranjada . O homem foi de lugar em lugar , a distribuir rebuçados , dois a cada pessoa , como se fôssemos crianças numa festa de aniversário . O cancro , como todas as doenças , procura infantilizar-nos para melhor nos subjugar . Recusaste delicadamente , não estavas preparada para te confundir com os outros doentes , que desembrulharam um dos rebuçados com um crepitar translúcido antes de o meterem na boca e guardaram o outro no bolso ou na malinha . Aquele chá , aqueles rebuçados são um ritual iniciático . Haverá tempo para isso , quando todos os outros caminhos estiverem tapados . Há mulheres carecas , com turbantes de marajás .

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