Fluir - nº 7 - Abril 2021 | Page 18

Sonho com renhidas batalhas microscópicas

Paulo Faria
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Sonho com renhidas batalhas microscópicas , exércitos de células a desembarcar numa praia amarela , diante das altas muralhas de uma cidade . Esta minha Ilíada passa-se no teu corpo , no gânglio sentinela da tua axila direita , e os sitiados vencem , escorraçam os intrusos . Não há no meu sonho a argúcia de Ulisses , não há cavalo de Tróia . O cirurgião mandou-te despir da cintura para cima e puxou um biombo com rodas para vos ocultar a meus olhos , a ti e a ele . Desviei o rosto , incomodado por outro homem dispor assim de ti . Também nos modos dele perpassou um ligeiro incómodo , um vago constrangimento de fundo que os anos de experiência não conseguiram dissipar . Mais tarde brinquei com a situação , disse-te que a tua doença não passa de um embuste , é uma conspiração dos médicos para te verem as mamas , tão belas . Disse-te que eles estão todos coligados e passam palavra uns aos outros . E que tu , tão ingénua , cais sempre na esparrela . Fiz-te rir e passei aquele dia ocupado a repetir e a adornar o gracejo , sabendo que no dia seguinte já não teria piada e que seria preciso começar tudo de novo para te distrair . A própria expressão , « gânglio sentinela », evoca guerras e cidades sitiadas . Os Romanos matavam à paulada as sentinelas que adormeciam no seu posto . Eram os camaradas do faltoso que executavam a sentença , como quem pune uma traição . Quando recebeste a notícia , disseste-me que sentias que o teu corpo te tinha traído .
Nos primeiros tempos do nosso amor disseste-me uma vez : « Sou muito saudável .» Como se dissesses : « Sou de confiança , não te vou deixar ficar mal . Não serei um peso para ti .» Mas agora o teu corpo traiu-te , o gânglio sentinela adormeceu no seu posto . O teu próprio corpo ameaça tornar-se um peso para ti , ameaça reger toda a tua existência . Ameaça escravizar-te . Disseste-me : « Não quero passar a ser uma daquelas mulheres que arrastam consigo um fardo , um apêndice a ocupar espaço , a incomodar toda a gente com a sua presença : “ Eu e o meu divórcio .” Ou : “ Eu e os meus cães .” No meu caso vai ser : “ Eu e o meu cancro .” Não quero isso . Quero continuar a ser só eu .» Disseste-me que não te compenetraste realmente do diagnóstico quando ouviste a palavra « cancro » da boca dos médicos . A palavra « cancro » era um caroço de fruta , uma grainha que cuspias para a palma da mão antes de a deitares no prato . Só acreditaste mesmo que tinhas um cancro quando leste o diagnóstico numa carta do IPO : « carcinoma invasivo , com padrão de crescimento de tipo lobular ». Resististe à palavra « cancro » enquanto pudeste , só cedeste quando já não havia como repeli-la , e então recuaste para a trincheira da segunda linha . Vais dinamitando tudo à medida que bates em retirada . Não deixas ao cancro nada de que se possa alimentar .
O carteiro perdera há muito a importância , tornarase uma figura obsoleta , pitoresca .