Fluir - nº 7 - Abril 2021 | Page 40

ENTREVISTA A EUGÉNIO LISBOA

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F1 – O que encontra de específico , no seu passado em Moçambique , para a formação do homem de letras em que se tornou ?
Muita coisa . Em Moçambique , o calor dilatava tudo , até o tempo . O espaço não precisava disso porque já era muito grande . Em Moçambique tive , portanto , muito tempo para ler e para fazer muitas outras coisas , como brincar na praia com o meu cão , ir à matinés do Scala ou , simplesmente , não fazer nada , o que é fazer muito . Não havia dinheiro para comprar livros ou outros luxos , mas havia generosidade que sobrava e sempre aconteciam alguns milagres . Por exemplo , um colega do meu pai nos CTT , grande leitor de boa literatura , arranjou um pretexto qualquer para me oferecer uma pequena biblioteca de cerca de cem livros , com estante e tudo , uma maravilha . Os livros eram do melhor que há e ainda hoje os conservo , apesar dos muitos trambolhões que a minha vida já levou . E o meu Pai , às escondidas da minha mãe , porque o orçamento era apertado , trazia-me livros , que eu devorava . Uns , comprados , outros recolhidos do refugo dos Correios , para ali atirados por terem sido estragados pelas águas do Atlântico e do Índico , na viagem entre Lisboa e Lourenço Marques . Foi de um desses refugos que me trouxe o Vermelho e Negro , de Stendhal , o Candide , de Voltaire e a Jane Eyre , da Charlotte Brontë , três monumentais acontecimentos na minha vida e formação .
Depois , ali , naquele paraíso tropical , ajudou muito o meu vício da leitura um conjunto inesquecível de professores excepcionais que tive no liceu . Tudo combinado , deu uma tempestade perfeita dentro de mim . E havia boas e bem apetrechadas livrarias , com livreiras competentes , como a D . Maria Teresa Arroz , na Minerva Central . E havia a biblioteca do liceu , onde descobri o Jean Cocteau , o Henry Troyat ( com um romance doentio : A Aranha ), o Philippe Hériat , etc . Li imenso , vivi imenso dentro dos livros , aprendi imenso e , sobretudo , gozei imenso .
F2 - Existe luz , ou tornou a haver , ou acredita que voltará a encontrá-la – literal e metaforicamente – como a da sua juventude moçambicana ? Que luz era essa ?
Nunca mais se reencontra , completamente , a luz , com a intensidade com que ela nos visitou na juventude . As descobertas que nessa altura se faziam intersectavam-nos com uma emoção que nunca mais se repete , com a mesma intensidade . Mas há sempre luz que chegue , num belo texto que sempre nos conquista , em qualquer idade . Um grande poema , um grande romance , uma grande peça de teatro ainda hoje conseguem não nos deixar exactamente como estávamos ou éramos antes de os lermos . Mas , a descoberta , na adolescência , da tragédia sem culpa do Rei Édipo , ou da paixão avassaladora pela Senhora de Rênal ou do estilo esbeltamente acutilante de Voltaire