Fluir nº 5 - junho 2020 - | Page 89

o Friedrich, iam até ficar contentes por não o ter deixado. Quero ajudar-te, disse eu. Porquê? É bom ajudar os outros. Bom para quem?, tens avião? Não, não tenho avião. Nem avião nem avioneta, sequer. O Friedrich passou o verão a pilotar uma avioneta, em vez de a elevar para o céu onde ela pertencia, foi obrigado a voar rasteiro por cima das praias para que os banhistas conseguissem ler a faixa que se esticava atrás da cauda. Um dia não resistiu, apontou a avioneta ao céu e foi logo castigado. Mas não foi isso que o fez não voltar no dia seguinte, pilotar era uma arte, tinha de se voar alto, bem alto, servir propósitos maiores, aquilo era indigno, era melhor não existir a existir assim. Não, não tenho avião. Ajudar os outros é fazer o que eles te pedem, não é? Acho que sim. Então vai-te embora, disseme o Friedrich. Não me mexi, o chapéu-de-chuva fechava uma cortina de água à nossa volta. De repente, ele levantou-se, estou farto, vou para casa. Afastou-se em direção à outra margem do rio. Apressei-me, atrás dele. Pára de me seguir. Tenho de ir contigo, não tens chapéu-de-chuva. Chamas a isso chapéu-de-chuva?, isso não serve para nada, e é inútil proteger da chuva o que a chuva molhou. Começou a andar muito depressa. Corri para ele e saltei-lhe para as cavalitas. Ele deixou-me estar mas não parou. Diz-me que não sou feia, segredeilhe. Feia como a noite escura. Era já noite escura e era bela a noite escura. Diz, bela como a noite escura. Feia, feia como a noite escura. Mas começou a assobiar. Continuava a andar comigo enganchada nele, o chapéu-de-chuva por cima de nós. Para que é que continuas com isso na mão?, foi ele que deu conta, já não tem pano sequer, para além de que parou de chover. Olhei para cima, sim, já não chovia e de tão tortas as varetas tinham soltado o pano. Esse esqueleto não serve para nada. Quis contrariá-lo, não, é bom, são grossas as pingas que caem das varetas, entram pela nuca, descem pelo meio das costas e fazem arrepios, não gostas de arrepios?, arrepios é bom. Ele pôs-me no chão, pensei que me fosse mandar embora outra vez, ainda mais quando me voltou de costas para ele. Em vez disso, meteu a mão por baixo da minha camisa e refez com os dedos o caminho das gotas de água. Estremeci. Arrepios, é bom arrepios. Estás encharcada, disse ele, anda, eu faço uma fogueira. Entrámos na mata, ele apontou para uma tenda pequenina montada entre as árvores e disse, é ali. Era ali, naquela tenda, que ele morava. O Friedrich tinha gasto o dinheiro todo para pagar o curso de aviador. Era o sonho dele, voar. Aplicou-se e foi o melhor aluno. O melhor piloto que alguma vez tinham visto, diziam os professores. Mas não lhe servia de nada ter sido o melhor aluno, quando o curso terminou não lhe sobrava dinheiro nenhum e, sem dinheiro nem nome de família, um diploma, mesmo do melhor aluno, não servia de nada, ninguém lhe dava emprego. Havia poucas vagas para pilotos e, de cada vez que abria uma, era preciso dinheiro ou 89