Fluir nº 5 - junho 2020 - | Page 88

88 na mesma, mas ele não. Salvei-o e só por isso podia agora sentir-lhe o calor do corpo encostado ao meu. Vai-te embora, estou farto de ti, és toda torta, toda feia, feia como a noite escura. Não aguentei mais, agarrei-me a ele e calei-o com um beijo. Deixou ficar a minha boca na boca dele durante muito tempo. As duas bocas, uma na outra, uma polpa carnuda, macia, húmida, tão húmida. Até que me afastou, chega. Escusas de chorar que não adianta. Eu não estava a chorar. É a chuva, não vês? A chuva não é salgada. Talvez estivesse a chorar, mas não era aquilo que ele pensava. Tinha razão, eu tinha razão, encontrar o amor ia ser como quando encontrei isto aqui, quando encontrasse reconheceria. Tinha encontrado o meu amor, a meio da ponte, de pé sobre o muro, entre uma margem e a outra. Friedrich, chama-se Friedrich. É belo e eu amo-o. O meu Friedrich. Entre uma margem e a outra. Ponho-me a pensar que o amor é como a ponte que liga uma margem à outra. Disparates de quem está apaixonada. Ele tinha-se prometido às águas e agora as águas passavam por baixo de nós, depressa, cada vez mais depressa, enfurecidas por não o levarem com elas, abanavam os pilares da ponte e os pilares da ponte abanavam-nos, o corpo dele firme, o meu a tremer, colado ao dele. Mas nem medo nem frio nem nada. Ligada. Ligada, sim. Sinto-me ligada. Deixou ficar a minha boca na boca dele, mas depois, chega. Tens raiva de mim, porque é que tens raiva de mim, perguntei. Não tens sonhos, é fácil viver sem sonhos. Sim, era isso, raiva. Não tens como saber o tormento que pode ser viver com sonhos. Ele é um aviador que não pode voar, um aviador forçado a ficar em terra porque há menos aviões do que aviadores. Lá em cima, nos ares, o Friedrich é feliz, vista de longe a terra é divina, e os olhos dele brilham, não há caminhos mas ele sabe sempre por onde seguir. Preso aqui em baixo, anda à deriva e a vida não tem sentido. Fecha os olhos, a cabeça cai sobre o meu ombro, pesada, a terra é aterradora. Baixinho, muito baixinho, quase sem se ouvir, são os tiranos mais cruéis, se não fazes o que eles querem, os sonhos matam-te, pior do que isso, vão-te matando. Mas posso subir ao muro, saltar do muro da ponte deve ser parecido com voar. Tento abraçá-lo mas ele não deixa, sabes lá o que é ter sonhos. Sei o que são pesadelos. Não ia contar-lhe da rua da estação dos caminhos-de-ferro, das ruas à volta da estação, mas ele também não queria saber, vaite embora, quando é que te vais embora e me deixas em paz? Se me fosse embora ele voltava a subir para o muro, não podia ser. E não queria deixá-lo nunca mais. Não tens nada que fazer? Tinha, tinha de encontrar os três deuses, mas mais cedo ou mais tarde ia encontrá-los e eles iam perceber que eu não tinha podido deixar