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na mesma, mas ele não. Salvei-o e só por isso podia
agora sentir-lhe o calor do corpo encostado ao
meu. Vai-te embora, estou farto de ti, és toda torta,
toda feia, feia como a noite escura. Não aguentei
mais, agarrei-me a ele e calei-o com um beijo.
Deixou ficar a minha boca na boca dele durante
muito tempo. As duas bocas, uma na outra, uma
polpa carnuda, macia, húmida, tão húmida. Até que
me afastou, chega. Escusas de chorar que não
adianta. Eu não estava a chorar. É a chuva, não vês?
A chuva não é salgada. Talvez estivesse a chorar,
mas não era aquilo que ele pensava.
Tinha razão, eu tinha razão, encontrar o amor ia ser
como quando encontrei isto aqui, quando
encontrasse reconheceria. Tinha encontrado o meu
amor, a meio da ponte, de pé sobre o muro, entre
uma margem e a outra. Friedrich, chama-se
Friedrich. É belo e eu amo-o. O meu Friedrich. Entre
uma margem e a outra. Ponho-me a pensar que o
amor é como a ponte que liga uma margem à outra.
Disparates de quem está apaixonada. Ele tinha-se
prometido às águas e agora as águas passavam por
baixo de nós, depressa, cada vez mais depressa,
enfurecidas por não o levarem com elas, abanavam
os pilares da ponte e os pilares da ponte
abanavam-nos, o corpo dele firme, o meu a tremer,
colado ao dele. Mas nem medo nem frio nem nada.
Ligada. Ligada, sim. Sinto-me ligada.
Deixou ficar a minha boca na boca dele, mas
depois, chega. Tens raiva de mim, porque é que
tens raiva de mim, perguntei. Não tens sonhos, é
fácil viver sem sonhos. Sim, era isso, raiva. Não tens
como saber o tormento que pode ser viver com
sonhos. Ele é um aviador que não pode voar, um
aviador forçado a ficar em terra porque há menos
aviões do que aviadores. Lá em cima, nos ares, o
Friedrich é feliz, vista de longe a terra é divina, e os
olhos dele brilham, não há caminhos mas ele sabe
sempre por onde seguir. Preso aqui em baixo, anda
à deriva e a vida não tem sentido. Fecha os olhos, a
cabeça cai sobre o meu ombro, pesada, a terra é
aterradora. Baixinho, muito baixinho, quase sem se
ouvir, são os tiranos mais cruéis, se não fazes o que
eles querem, os sonhos matam-te, pior do que isso,
vão-te matando. Mas posso subir ao muro, saltar do
muro da ponte deve ser parecido com voar. Tento
abraçá-lo mas ele não deixa, sabes lá o que é ter
sonhos.
Sei o que são pesadelos. Não ia contar-lhe da rua
da estação dos caminhos-de-ferro, das ruas à volta
da estação, mas ele também não queria saber, vaite
embora, quando é que te vais embora e me
deixas em paz? Se me fosse embora ele voltava a
subir para o muro, não podia ser. E não queria
deixá-lo nunca mais. Não tens nada que fazer?
Tinha, tinha de encontrar os três deuses, mas mais
cedo ou mais tarde ia encontrá-los e eles iam
perceber que eu não tinha podido deixar