Fluir nº 5 - junho 2020 - | Page 85

dignidade, exige fiador, o dobro da renda, um ano de avanço, a Mónica não tem como pagar. Não adiantava fazer voz grossa, a voz grossa acanha os que estão abaixo de nós, resolve tudo o que haja para resolver com eles, mas a quem nos está acima a voz grossa só insufla. E faz ruído. Não valia a pena espicaçar nem dar mais desculpas à velha. Que sim, que sim, senhora, que pois com certeza. Fiquei a vê-la afastar-se em direção ao prédio dos ricos. No último andar, o Mil-folhas está bem acima da senhoria. Desde que a Mónica aqui chegou não pára de oferecer-se para ajudar no que for preciso, uma gentileza que todos lhe desconhecem. A solução vai ter de ser essa, vou a casa do Milfolhas, apresento-me, vai gostar de me conhecer, e mais ainda que lhe peça para proteger a minha prima. Direi que ela tem grande estima e carinho por ele, que antes de partir muito me descansaria saber que a minha prima tem alguém bom do lado dela, ainda por cima poderoso como ele. Eu mesmo contarei aquilo por que a Mónica teve de passar. Antes que o Canivetes ou a senhoria o façam, que o que entendemos do que nos contam tem mais a ver com a forma como nos contam do que com o que é contado. Saber o que a Mónica viveu na rua da estação dos caminhos-de-ferro, nas ruas à volta da estação, sabê-lo da forma como lhe vou contar, só vai deixar o Mil-folhas ainda mais sensibilizado. Quem protege gosta tanto mais de proteger, quanto mais desprotegidos forem aqueles que protege. E depois adeus, a Mónica pode voltar. Voltar em paz. 4. Mónica Se não fosse o Canivetes, nunca teria atravessado a ponte num dia como o de ontem. Uma chuva miudinha o tempo todo, chuva-molha-tolos. Mesmo sem vento e com o chapéu-de-chuva aberto, ao fim de alguns passos a roupa estava encharcada, os pés enlameados. Não se pode confiar no que o Canivetes diz, mas precisava de saber se era verdade o que ele contou, que ao passar pela mata da outra margem do rio, ia ele a pedalar na bicicleta de amola-tesouras, deu de caras com os três deuses, reconheceram-no e disseram-lhe que estão tristes comigo por os semabrigo já não estarem aqui. Um soco no estômago, foi o que foi, os deuses que me ajudaram tristes comigo, não podia ser, tinha de encontrá-los. Metime a caminho, queria lá saber que não parasse de chover, precisava explicar-lhes o que tinha acontecido, queria que soubessem que está tudo bem, que não têm de se preocupar. O Mil-folhas está a construir uma fábrica nova, muito grande, deu emprego a todos os que precisavam. Fez isso por minha causa, para me agradar, eu sei, mas não tem mal que seja assim, o importante é já não haver ninguém na rua nem com fome. 85