dignidade, exige fiador, o dobro da renda, um ano
de avanço, a Mónica não tem como pagar. Não
adiantava fazer voz grossa, a voz grossa acanha os
que estão abaixo de nós, resolve tudo o que haja
para resolver com eles, mas a quem nos está acima
a voz grossa só insufla. E faz ruído. Não valia a pena
espicaçar nem dar mais desculpas à velha. Que sim,
que sim, senhora, que pois com certeza. Fiquei a
vê-la afastar-se em direção ao prédio dos ricos.
No último andar, o Mil-folhas está bem acima da
senhoria. Desde que a Mónica aqui chegou não
pára de oferecer-se para ajudar no que for preciso,
uma gentileza que todos lhe desconhecem. A
solução vai ter de ser essa, vou a casa do Milfolhas,
apresento-me, vai gostar de me conhecer, e
mais ainda que lhe peça para proteger a minha
prima. Direi que ela tem grande estima e carinho
por ele, que antes de partir muito me descansaria
saber que a minha prima tem alguém bom do lado
dela, ainda por cima poderoso como ele. Eu mesmo
contarei aquilo por que a Mónica teve de passar.
Antes que o Canivetes ou a senhoria o façam, que o
que entendemos do que nos contam tem mais a ver
com a forma como nos contam do que com o que é
contado. Saber o que a Mónica viveu na rua da
estação dos caminhos-de-ferro, nas ruas à volta da
estação, sabê-lo da forma como lhe vou contar, só
vai deixar o Mil-folhas ainda mais sensibilizado.
Quem protege gosta tanto mais de proteger,
quanto mais desprotegidos forem aqueles que
protege.
E depois adeus, a Mónica pode voltar. Voltar em
paz.
4. Mónica
Se não fosse o Canivetes, nunca teria atravessado a
ponte num dia como o de ontem. Uma chuva
miudinha o tempo todo, chuva-molha-tolos.
Mesmo sem vento e com o chapéu-de-chuva
aberto, ao fim de alguns passos a roupa estava
encharcada, os pés enlameados. Não se pode
confiar no que o Canivetes diz, mas precisava de
saber se era verdade o que ele contou, que ao
passar pela mata da outra margem do rio, ia ele a
pedalar na bicicleta de amola-tesouras, deu de
caras com os três deuses, reconheceram-no e
disseram-lhe que estão tristes comigo por os semabrigo
já não estarem aqui. Um soco no estômago,
foi o que foi, os deuses que me ajudaram tristes
comigo, não podia ser, tinha de encontrá-los. Metime
a caminho, queria lá saber que não parasse de
chover, precisava explicar-lhes o que tinha
acontecido, queria que soubessem que está tudo
bem, que não têm de se preocupar. O Mil-folhas
está a construir uma fábrica nova, muito grande,
deu emprego a todos os que precisavam. Fez isso
por minha causa, para me agradar, eu sei, mas não
tem mal que seja assim, o importante é já não
haver ninguém na rua nem com fome.
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