Fluir nº 5 - junho 2020 - | Page 82

82 sim, tu, e tu, e tu, e tu, e tu, baixavam a cabeça, davam-me passagem. Os poucos que refilavam só se atreviam a fazê-lo nas minhas costas, virava-me logo e encarava-os, algum problema?, engoliam em seco e calavam, nenhum problema. Muitos saíram antes que eu tivesse tido tempo de chegar junto deles. Os que tinham tralha, pegavam na tralha e punham-se a andar. Os que nada mais tinham a não ser o pouco que traziam vestido desapareciam ainda mais depressa. Sobravam já menos de metade quando fiquei frente a frente com um homem que não desviava o olhar, és uma fraude, acusou-me sem pestanejar, foi a Mónica que nos deixou ficar aqui, só a Mónica pode pôr-nos na rua. Logo os outros se apressaram a concordar, é isso, é isso mesmo, uma algazarra. Uns que já estavam de saída voltaram para trás. Não precisei levantar a voz, o tom seco calou quase por completo a barulheira, isto também é meu, usurpador de merda. Ficou calado, mas não se desviou. Contornei-o e segui para os outros, cambada de usurpadores. Continuavam a sair, agora a ritmo mais lento. O atrevimento do homem que não desviava o olhar fez com que mais alguns me enfrentassem. Apesar disso, no final podia contarse os que sobravam, tão poucos que o espaço parecia enorme, distinguia-se finalmente que isto podia ser um café. Dispersos pela sala, os semabrigo quase podiam ser confundidos com clientes num dia de pouca freguesia. À espera de quê?, a acústica do antigo teatrinho continua perfeita, à espera de quê?, perguntei como se falasse para mim, mas todos me ouviram. Perceberam que insistia para que saíssem. Só cinco ou seis o fizeram. O homem que não desviava o olhar continuava aqui, ele e os outros que o imitaram. Sorri-lhes, abri uma caixa que tinha trazido e puderam ver que estava cheia de bolos. Agora o que havia chegava para todos. Ofereci-lhos. Enquanto se lambuzavam fui até à porta. Tinha a expectativa de que um polícia estivesse a chegar. Antes de vir para aqui, passei na esquadra, pedi que enviassem um agente daí a meia hora, motivo?, tinha informações de que estava a ser preparado um assalto ao meu estabelecimento, torceram o nariz, suspeitava mesmo que alguns dos meliantes faziam parte de um dos bandos de miseráveis envolvido na revolta que dizem que está a acontecer a norte, ficaram mais interessados, abri a carteira e pus uma nota em cima do balcão do atendimento, prometeram imediatamente que um agente estaria aqui daí a meia hora, no máximo. Os sem-abrigo comiam os bolos com sofreguidão, consultei o relógio, passavam três quartos de hora, o agente devia estar a chegar. Estava mesmo. Convidei-o a entrar. Bastou verem-no e quatro dos sem-abrigo saíram. Estes homens foram despedidos da fábrica de bolos, disse eu ao polícia de maneira que todos me ouvissem, roubavam lá bolos e agora é a mim que mos roubam, veja. Havia migalhas e açúcar nas mãos e bocas de todos. Sete deles saíram apressadamente.