Fluir nº 5 - junho 2020 - | Page 81

e ser minimamente credível quando a nomeasse. Foi preciso a Mónica inventar-me. E depois criarme. Um dia em que os que aqui estavam já se tinham barricado, em que já ninguém podia sair, sair significava não voltar, tal era a guerra que existia entre os que aqui dentro queriam guardar o nenhum espaço que restava, e os outros que lá fora faziam um cerco cada vez maior, esperando uma oportunidade que lhes permitisse entrar, um dia em que o pequeno paraíso que a Mónica queria criar com o dinheiro que os deuses lhe tinham dado se transformara num inferno, ocupado pelos que precisavam sem poder servir os que precisavam, nesse dia, a Mónica levantou a voz. O barulho não deixou que ninguém a entendesse, mas a surpresa calou todos. A Mónica pôde então repetir baixinho o que tinha dito e fez-se ouvir. Quero sair. Já não fazia nada aqui. Quero ir embora. De repente, surgiu espaço onde nenhum espaço havia, a Mónica andava e um corredor humano abria-se à sua frente, foi-o atravessando sem saber bem para onde estava a ir. Voltei eu. Sou o Basílio, o primo da Mónica. Pensavam que estava a brincar, o primo tinha sido uma invenção, como é que podia estar aqui um primo. Não alimentei conversas e fiz voz grossa, era eu quem mandava e não entrava mais ninguém. Foi o suficiente para que os que estavam fechados aqui dentro não duvidassem da minha realidade. Uma realidade improvável mas conveniente é sempre melhor do que uma realidade confirmada e incómoda. Comentavam entre eles que muitas vezes aquilo que parece um milagre é apenas a coincidência entre o desejo por uma coisa que já existe mas não está manifesta e essa coisa manifestar-se. Enredaram-se em conversas sobre intuições, premonições e invocações, e não se fizeram rogados em aclamar-me legítimo representante da minha prima, sócio dela ou mais ainda, único dono e senhor do café. Riam-se satisfeitos ao verem o cerco dispersar-se, aplaudiam com tanto entusiasmo, que em vez de um bando de sem-abrigo mais pareciam o público do antigo teatrinho, que esgotando por completo a sala, tivesse acabado de assistir ao mais extraordinário espetáculo das suas vidas. Agora vocês. Primeiro ninguém percebeu o significado do que eu estava a dizer. Repeti mais alto e mais forte, agora vocês. Leva-se algum tempo a reconhecer um inimigo em alguém que tenha sido, nem que seja por instantes, nosso aliado, mas tenho a certeza que desta vez foram muitos os que pelo menos adivinharam o sentido do que eu dizia. Terão achado que a melhor estratégia era fingir que não entendiam, ninguém se mexeu, mas também ninguém se atreveu a falar. Silêncio completo. Desandem, desandem todos, gritei, e depois a plenos pulmões, todos, ouviram? E para que não houvesse dúvidas de que não estava a brincar nem excetuava ninguém passeei-me por entre eles olhando-os um por um nos olhos, e confirmando, 81