Fluir nº 5 - junho 2020 - | Page 80

80 prima que ela não ajudasse. A incapacidade de a Mónica recusar ajuda a quem quer que fosse, essa ajuda não estar sequer limitada a um certo número de pessoas, para além de determinar um roubo no que lhes tinha sido dado, já que sendo o espaço limitado, era cada vez menor a quantidade que cabia a cada um, significava que os que aqui estavam não tinham sido escolhidos, tinham sido simplesmente aceites, tanto fazia que fossem quem são ou outros quaisquer. Se a minha prima não tinha escolhido ninguém em particular, então também ninguém lhe devia nada. Todos davam maior valor ao que lhes tinha sido dado, mas em vez de agradecerem, reivindicavam, pediam que a Mónica recusasse quem chegava. A partilha com cada vez mais pessoas tinha feito com que primeiro ficassem com menos do que queriam e depois com menos do que necessitavam. É fácil partilhar o que abunda, difícil é partilhar o que escasseia. Não demorou muito até que os pedidos passassem a exigências. Ao aceitarem o que a minha prima lhes dera, tinham prescindido de procurar sítio melhor, isto para já não falar do trabalho oferecido na recuperação do espaço. As recriminações e acusações sucederam-se, mas de nada serviram, a Mónica não é capaz de dizer que não a quem precisa de ajuda. Os que aqui estavam passaram a encarar a compaixão que ela sentia pelos outros como masoquismo e a generosidade como exibicionismo. De benfeitora passou a hipócrita. A todos a Mónica desculpava por saber que a aflição de quem muito carece quase sempre impede o decoro de pedir e a disponibilidade para partilhar. Julgando ser pudor ou desajeitamento o que fazia com que a minha prima não conseguisse dizer um simples não, um dos que aqui estavam teve uma ideia, a Mónica podia recusar os que chegavam não em seu nome mas sim de um outro, um primo por exemplo, inventando que era ele quem de facto tinha o direito de mandar em tudo isto. A ideia passou de boca em boca e todos a consideraram genial. Só que a Mónica continuou a acolher quem chegava com a mesma simpatia de sempre. Os que já aqui estavam convenceram-se de que ela não queria prestar-lhes atenção. Mas não foi isso que aconteceu. A ideia tinha sido formulada e a Mónica já não a podia esquecer, o que se conhece nunca mais se desconhece. E então, quando o espaço se tornou mínimo para tanta gente, quando os que aqui estavam tomaram conta de tudo e depois se barricaram e depois começaram as lutas entre os de dentro e os de fora, entre os de dentro e os de dentro, quando o barulho se tornou tanto que era difícil até pensar, então a Mónica estava sempre a lembrar-se, e se houvesse um outro?, e se houvesse um primo? Não havia primo nenhum, ninguém que pudesse apresentar-se como tal, nem sequer a imagem de uma pessoa severa que fosse suficientemente querida pela Mónica para que ela pudesse invocá-la