Fluir nº 5 - junho 2020 - | Page 79

contra a madeira, contra os vidros, contra a chapa. E os gritos, abram, abram, abram. 3. Basílio Sou o Basílio, o primo da Mónica. Foi um dos semabrigo que teve a ideia de me chamar, não sei qual, são tantos, o melhor é não lhes saber os nomes nem lhes conhecer as caras. Os primeiros que se instalaram aqui ficaram contentes que outros chegassem e ficassem. Assim não precisavam de sentir-se tão agradecidos. Mesmo que não se estabeleça uma espécie de dívida para com quem é merecedor do agradecimento, há sempre o desconforto de se ter necessitado de qualquer coisa que teve de ser outro a providenciar e não nós. Seja como for, quanto menor o valor do que nos é dado, menos precisamos de sentir-nos agradecidos, menor a dívida, a espécie de dívida, menor o desconforto. E se é verdade que o valor do que se recebe tem a ver com a necessidade que se tem do que se recebe, também não é menos verdade que o valor do que é dado é tanto menor quanto mais se tem para dar. Dar a vida por qualquer coisa, mesmo que seja por uma ninharia, é sempre mais valioso do que dispensar um tempo ao que quer que seja, por maior utilidade que esse quer-que-seja possa ter. Vida, cada um só tem uma, enquanto tempo, uns mais outros menos, todos vamos tendo algum. Por isso quando a Mónica deu teto a outros sem-abrigo o agradecimento dos que já aqui estavam diminuiu, não por ser menor a parcela de teto que cabia a cada um, mas pelo menor valor que decidiam reconhecer que o teto tinha para a minha prima. Os novos sem-abrigo eram bem-vindos pelos que já cá estavam. Até porque, assim, também o trabalho que precisava ser feito para que a espelunca em que se tinha tornado o antigo teatrinho se transformasse num café em condições, passava a ser dividido por mais pessoas. Vendo a Mónica sozinha a braços com uma empreitada tão grande, o agradecimento que os primeiros que chegaram sentiam pela comida e pelo teto que lhes era dado levara-os a retribuir oferecendo-se para ajudar. Mas, tal como lhes sabia melhor agradecer menos, também lhes sabia melhor trabalhar menos. Foi assim que durante uns tempos todos ficaram agradados por a Mónica não recusar teto a ninguém. O problema é que, em tempos de miséria, há mais homens e mulheres sem teto do que teto para os abrigar, há mais mulheres e homens sem comida do que comida para os alimentar. Os sem-abrigo não pararam de chegar, mas o teto era sempre o mesmo. Depressa deixou de ser bastante para tantos. A escassez que começava a adivinhar-se fez com que os muitos que já aqui estavam voltassem a reconhecer valor ao que lhes tinha sido dado, mas isso não implicava agora qualquer agradecimento. Aquilo que é dado a muitos, a todos desobriga. Sentiam-se até talvez ofendidos. Não havia ninguém que pedisse ajuda à minha 79