contra a madeira, contra os vidros, contra a chapa. E
os gritos, abram, abram, abram.
3. Basílio
Sou o Basílio, o primo da Mónica. Foi um dos semabrigo
que teve a ideia de me chamar, não sei qual,
são tantos, o melhor é não lhes saber os nomes
nem lhes conhecer as caras. Os primeiros que se
instalaram aqui ficaram contentes que outros
chegassem e ficassem. Assim não precisavam de
sentir-se tão agradecidos. Mesmo que não se
estabeleça uma espécie de dívida para com quem é
merecedor do agradecimento, há sempre o
desconforto de se ter necessitado de qualquer
coisa que teve de ser outro a providenciar e não
nós. Seja como for, quanto menor o valor do que
nos é dado, menos precisamos de sentir-nos
agradecidos, menor a dívida, a espécie de dívida,
menor o desconforto. E se é verdade que o valor do
que se recebe tem a ver com a necessidade que se
tem do que se recebe, também não é menos
verdade que o valor do que é dado é tanto menor
quanto mais se tem para dar. Dar a vida por
qualquer coisa, mesmo que seja por uma ninharia,
é sempre mais valioso do que dispensar um tempo
ao que quer que seja, por maior utilidade que esse
quer-que-seja possa ter. Vida, cada um só tem uma,
enquanto tempo, uns mais outros menos, todos
vamos tendo algum. Por isso quando a Mónica deu
teto a outros sem-abrigo o agradecimento dos que
já aqui estavam diminuiu, não por ser menor a
parcela de teto que cabia a cada um, mas pelo
menor valor que decidiam reconhecer que o teto
tinha para a minha prima. Os novos sem-abrigo
eram bem-vindos pelos que já cá estavam. Até
porque, assim, também o trabalho que precisava
ser feito para que a espelunca em que se tinha
tornado o antigo teatrinho se transformasse num
café em condições, passava a ser dividido por mais
pessoas. Vendo a Mónica sozinha a braços com uma
empreitada tão grande, o agradecimento que os
primeiros que chegaram sentiam pela comida e
pelo teto que lhes era dado levara-os a retribuir
oferecendo-se para ajudar. Mas, tal como lhes sabia
melhor agradecer menos, também lhes sabia
melhor trabalhar menos. Foi assim que durante uns
tempos todos ficaram agradados por a Mónica não
recusar teto a ninguém.
O problema é que, em tempos de miséria, há mais
homens e mulheres sem teto do que teto para os
abrigar, há mais mulheres e homens sem comida do
que comida para os alimentar. Os sem-abrigo não
pararam de chegar, mas o teto era sempre o
mesmo. Depressa deixou de ser bastante para
tantos. A escassez que começava a adivinhar-se fez
com que os muitos que já aqui estavam voltassem
a reconhecer valor ao que lhes tinha sido dado,
mas isso não implicava agora qualquer
agradecimento. Aquilo que é dado a muitos, a
todos desobriga. Sentiam-se até talvez ofendidos.
Não havia ninguém que pedisse ajuda à minha
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