Fluir nº 5 - junho 2020 - | Page 78

78 Aconcheguei-os na mesma. Um deles contou-me que também costumavam derrubar os tijolos com que a senhoria manda emparedar a porta e as janelas, e vir aqui para dentro. Especialmente quando está frio como agora. Quase todas as semanas a senhoria tinha de mandar pôr tijolos novos, não admira que tenha ficado contente por eu arrendar o espaço. Os semabrigo também ficaram contentes. Ao princípio não, pensaram que os ia pôr na rua, já que ia ter aqui um café, mas depois perceberam que eu não era capaz de fazer isso e a preocupação passoulhes, havíamos de arranjar maneira de ficarmos todos aqui dentro, eles, eu e os outros sem-abrigo que entretanto tinham chegado. Ofereceram-se até para ajudar a pôr isto como deve ser. Enquanto fomos arranjando o espaço, foram aparecendo mais sem-abrigo. A todos fui dizendo que sim, que podiam comer da minha comida, que podiam dormir sob o meu teto, sou lá eu capaz de ficar sem fazer nada quando há gente à minha volta a pedir coisas. Porque é que o barulho não pára? Tenho medo. Muito medo. O barulho é cada vez maior. Não pode durar muito mais. Mas não sei do que tenho mais medo, se do barulho lá fora, se disto aqui dentro. Com licença, dão-me licença? Obrigada. Não faz mal. Quando começou a haver muita gente, os que estão aqui há mais tempo passaram a querer que eu pusesse na rua os que chegaram depois, diziam que ajudaram mais na obra e que ganharam direitos. Os que chegaram depois queriam o contrário, que eu pusesse na rua os que estão aqui há mais tempo, já tinham usufruído bastante e é preciso dar lugar a outros, se as coisas más chegam a todos, as boas também têm de chegar. Todos perceberam que não sou capaz de fazer uma coisa nem outra, e que ia continuar sem negar comida e teto a quem quer que aparecesse. Decidiram então tomar eles conta de tudo, independentemente da minha vontade, não iam deixar entrar mais ninguém. Mas continuavam a chegar mais e mais sem-abrigo. De nada servia dizerem-lhes que não havia lugar, tentavam forçar a entrada. Passou a haver lutas entre os que chegavam e os que já aqui estavam. A porta e as janelas foram reforçadas e agora estamos barricados aqui dentro. Ninguém entra mas também ninguém pode sair. Sair significa não voltar, os que aqui ficam não o permitirão, um lugar é uma coisa preciosa, um pouco mais de espaço para todos, que o chão é pequeno para nos deitarmos nele e dormirmos todos ao mesmo tempo, é preciso fazermos turnos. Lá fora o frio é cada vez maior, não pára de chegar gente e mais gente. A porta e as janelas abanam com a violência com que batem, não tarda vêm abaixo. É ensurdecedor o barulho dos punhos