Fluir nº 5 - junho 2020 - | Page 75

e pássaros que me acordam todas as manhãs, é o lado do caminho de terra batida por onde se chega, por aí ou pela praia ou pelo mar, a música misturase com as vozes das pessoas que enchem a casa e com as ondas que rebentam na areia. Voltei de repente a cabeça na direção do parque infantil, tinha dois olhos cravados em mim. Eram os olhos da muda que eu ainda não sabia que era muda, uma rapariguita sentada no baloiço sem baloiçar, não havia mais ninguém por perto. Mesmo comigo a olhar para ela, continuou a fixar-me como só os animais são capazes de fazer, mas quando me endireitei no banco, levantou-se de um salto sem reparar que tinha deixado cair qualquer coisa, parecia ser um livro pequeno. Chamei por ela mas não quis saber. Fui apanhar o livro e gritei-lhe, hei, hei, mas nada. Afinal o livro era um caderninho de folhas brancas, mais de metade cheias de desenhos. Chamei outra vez, voltou-se, acenei-lhe mas não parou. Comecei a andar atrás dela, chamando. Não se virou mais, mas deve ter percebido que eu a seguia, parecia pressentir quando me aproximava porque acelerava o passo. Andámos assim durante muito tempo. A mala de viagem atrapalhava-me os movimentos, teria acabado por perder-me da muda se ao chegar aqui ela não tivesse parado de repente. Voltou-se, deixou-se ficar a olhar para mim e pude chegar perto. Afinal a rapariguita era uma mulher feita, o corpo miúdo enganava. Deixou cair um livro, disse- -lhe ainda ofegante. Respondeu-me com uns sons esquisitos da garganta, foi aí que percebi que era muda. Dizem que também é surda, talvez seja, não sei, de uma das vezes que chamei voltou-se para trás, mas pode ter sido coincidência, é difícil compreendê-la e saber se nos compreende. Estendi-lhe o caderninho dos desenhos, ao vê-lo arrancou-mo das mãos e fugiu. Desapareceu por detrás do bloco de apartamentos lá ao fundo. De repente, percebi que não sabia onde estava. Olhei em volta e arrepiei-me. Arrepiei-me toda. Nunca tinha sentido nada assim. Uma sensação tão forte. Sensação não, certeza, tinha chegado, era aqui. O meu bar de madeira sobre a praia estava à minha frente. É aqui. Reconheci-o logo apesar de ser completamente diferente do que ainda há pouco tinha construído na minha cabeça. Nada era como eu tinha imaginado, mas era tudo mais parecido com o que eu tinha imaginado do que o que eu tinha imaginado, é esquisito, não sei explicar. Em vez do mar, o rio escondido por detrás do prédio alto dos ricos, esta margem em vez da praia, no lugar das porta-janelas enormes abertas de par em par, vãos emparedados de antigas portas, de antigas janelas, com os tijolos à mostra, o betão dos blocos de apartamentos em vez da madeira, e das árvores cheias de folhas e pássaros só sobrava uma muito mirrada, muito mirrada mas linda, uma oliveira velhinha no terreiro entre os prédios. Tudo estava certo, tudo está certo. Quando não conhecemos as coisas inventamo-las de outra 75