e pássaros que me acordam todas as manhãs, é o
lado do caminho de terra batida por onde se chega,
por aí ou pela praia ou pelo mar, a música misturase
com as vozes das pessoas que enchem a casa e
com as ondas que rebentam na areia.
Voltei de repente a cabeça na direção do parque
infantil, tinha dois olhos cravados em mim. Eram os
olhos da muda que eu ainda não sabia que era
muda, uma rapariguita sentada no baloiço sem
baloiçar, não havia mais ninguém por perto. Mesmo
comigo a olhar para ela, continuou a fixar-me como
só os animais são capazes de fazer, mas quando me
endireitei no banco, levantou-se de um salto sem
reparar que tinha deixado cair qualquer coisa,
parecia ser um livro pequeno. Chamei por ela mas
não quis saber. Fui apanhar o livro e gritei-lhe, hei,
hei, mas nada. Afinal o livro era um caderninho de
folhas brancas, mais de metade cheias de
desenhos. Chamei outra vez, voltou-se, acenei-lhe
mas não parou. Comecei a andar atrás dela,
chamando. Não se virou mais, mas deve ter
percebido que eu a seguia, parecia pressentir
quando me aproximava porque acelerava o passo.
Andámos assim durante muito tempo. A mala de
viagem atrapalhava-me os movimentos, teria
acabado por perder-me da muda se ao chegar aqui
ela não tivesse parado de repente. Voltou-se,
deixou-se ficar a olhar para mim e pude chegar
perto. Afinal a rapariguita era uma mulher feita, o
corpo miúdo enganava. Deixou cair um livro, disse-
-lhe ainda ofegante. Respondeu-me com uns sons
esquisitos da garganta, foi aí que percebi que era
muda. Dizem que também é surda, talvez seja, não
sei, de uma das vezes que chamei voltou-se para
trás, mas pode ter sido coincidência, é difícil
compreendê-la e saber se nos compreende.
Estendi-lhe o caderninho dos desenhos, ao vê-lo
arrancou-mo das mãos e fugiu. Desapareceu por
detrás do bloco de apartamentos lá ao fundo. De
repente, percebi que não sabia onde estava. Olhei
em volta e arrepiei-me. Arrepiei-me toda. Nunca
tinha sentido nada assim. Uma sensação tão forte.
Sensação não, certeza, tinha chegado, era aqui. O
meu bar de madeira sobre a praia estava à minha
frente. É aqui. Reconheci-o logo apesar de ser
completamente diferente do que ainda há pouco
tinha construído na minha cabeça. Nada era como
eu tinha imaginado, mas era tudo mais parecido
com o que eu tinha imaginado do que o que eu
tinha imaginado, é esquisito, não sei explicar. Em
vez do mar, o rio escondido por detrás do prédio
alto dos ricos, esta margem em vez da praia, no
lugar das porta-janelas enormes abertas de par em
par, vãos emparedados de antigas portas, de
antigas janelas, com os tijolos à mostra, o betão
dos blocos de apartamentos em vez da madeira, e
das árvores cheias de folhas e pássaros só sobrava
uma muito mirrada, muito mirrada mas linda, uma
oliveira velhinha no terreiro entre os prédios. Tudo
estava certo, tudo está certo. Quando não
conhecemos as coisas inventamo-las de outra
75