Fluir nº 5 - junho 2020 - | Page 73

que só se se passar por dificuldades é que se sabe se a bondade é bondade a sério. O terceiro deus considerou que quando as dificuldades são extremas ninguém repara nos outros, muito menos pode acorrer-lhes. Acabaram por concordar que valia a pena ajudarem-me. Daí a pouco ouvi o assobio do Canivetes e acordei. Os deuses já aqui não estavam. Antes de o Canivetes chegar cá acima olhei para a mesinha de cabeceira e ao lado do abajur das franjinhas havia um monte de notas com as algemas que às vezes uso com os homens pousadas por cima, a servirem de pisa-papéis. Tal e qual como no sonho. Não podia acreditar no que via. Afinal talvez não me tivesse deixado adormecer. Ou então podia estar ainda a sonhar. Posso estar ainda a sonhar. A única maneira de aceitarmos como real aquilo que parece um sonho é deixarmos o tempo passar. Se não acordarmos então é porque o sonho é a realidade. Com os pesadelos é igual. Durante estes anos todos, por várias vezes convenci-me de que o que estava a viver não era real, era um pesadelo. Só que o tempo foi passando, passando, passando e nunca acordei. O Canivetes quis que eu contasse tudo o que aconteceu e agora deve andar a espalhar que estou rica, uma história mirabolante que vem de perto é ainda mais apetecível do que uma que vem de longe, o Canivetes não ia desperdiçar uma história destas. De certeza que foi ele que contou ao aleijado, como é que o aleijado ia adivinhar? Hoje não saí à rua, deixei-me ficar em casa o dia todo, mas ele apareceu aqui ainda há pouco, agora não tens por que me recusar, posso ter-te? O aleijado mal tem dinheiro para comer, muito menos para pagar mulheres, anda sempre de volta de mim, de volta das mulheres da rua da estação dos caminhos-de-ferro, das ruas à volta da estação, nenhuma de nós o aceita. Preço fixo. Preço fixo porquê? Já não fazia sentido. O aleijado insistiu, os deuses ajudaram-te, ajuda-me também. Não foi para isto que os deuses me ajudaram, o dinheiro que me deram é para partilhar com quem precisa, é essa a minha obrigação. Eu preciso, o aleijado não desistia. Essa maneira de precisar não conta. Porque não? E a beleza também foram os deuses que ta deram, agora podes partilhá-la, é essa também a tua obrigação. Não sou bonita, disse-lhe. O aleijado respondeu, não importa, e agarrou-me. Deixei que me agarrasse. A janelinha aberta sobre o telhado, a água a correr sem parar. Contra o meu corpo. Saiu daqui ainda há pouco, o aleijado. Foi o último homem que fiz. Já decidi, não volto mais à rua da estação dos caminhos-de-ferro, às ruas à volta da estação, foi o último homem que fiz. Fazer um homem. Estranha, esta maneira de dizer. 73