que só se se passar por dificuldades é que se sabe
se a bondade é bondade a sério. O terceiro deus
considerou que quando as dificuldades são
extremas ninguém repara nos outros, muito menos
pode acorrer-lhes. Acabaram por concordar que
valia a pena ajudarem-me. Daí a pouco ouvi o
assobio do Canivetes e acordei. Os deuses já aqui
não estavam. Antes de o Canivetes chegar cá acima
olhei para a mesinha de cabeceira e ao lado do
abajur das franjinhas havia um monte de notas com
as algemas que às vezes uso com os homens
pousadas por cima, a servirem de pisa-papéis. Tal e
qual como no sonho. Não podia acreditar no que
via. Afinal talvez não me tivesse deixado
adormecer. Ou então podia estar ainda a sonhar.
Posso estar ainda a sonhar. A única maneira de
aceitarmos como real aquilo que parece um sonho
é deixarmos o tempo passar. Se não acordarmos
então é porque o sonho é a realidade. Com os
pesadelos é igual. Durante estes anos todos, por
várias vezes convenci-me de que o que estava a
viver não era real, era um pesadelo. Só que o
tempo foi passando, passando, passando e nunca
acordei.
O Canivetes quis que eu contasse tudo o que
aconteceu e agora deve andar a espalhar que estou
rica, uma história mirabolante que vem de perto é
ainda mais apetecível do que uma que vem de
longe, o Canivetes não ia desperdiçar uma história
destas. De certeza que foi ele que contou
ao aleijado, como é que o aleijado ia adivinhar?
Hoje não saí à rua, deixei-me ficar em casa o dia
todo, mas ele apareceu aqui ainda há pouco, agora
não tens por que me recusar, posso ter-te? O
aleijado mal tem dinheiro para comer, muito menos
para pagar mulheres, anda sempre de volta de
mim, de volta das mulheres da rua da estação dos
caminhos-de-ferro, das ruas à volta da estação,
nenhuma de nós o aceita. Preço fixo. Preço fixo
porquê? Já não fazia sentido. O aleijado insistiu, os
deuses ajudaram-te, ajuda-me também. Não foi
para isto que os deuses me ajudaram, o dinheiro
que me deram é para partilhar com quem precisa, é
essa a minha obrigação. Eu preciso, o aleijado não
desistia. Essa maneira de precisar não conta.
Porque não? E a beleza também foram os deuses
que ta deram, agora podes partilhá-la, é essa
também a tua obrigação. Não sou bonita, disse-lhe.
O aleijado respondeu, não importa, e agarrou-me.
Deixei que me agarrasse. A janelinha aberta sobre
o telhado, a água a correr sem parar. Contra o meu
corpo. Saiu daqui ainda há pouco, o aleijado. Foi o
último homem que fiz. Já decidi, não volto mais à
rua da estação dos caminhos-de-ferro, às ruas à
volta da estação, foi o último homem que fiz. Fazer
um homem. Estranha, esta maneira de dizer.
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