Fluir nº 5 - junho 2020 - | Page 72

72 Por cima a lua encolhe-se em quarto minguante, mas lá em baixo estica-se metálica pelos carris, quatro riscos brilhantes, lado a lado, a direito até à curva ao fundo onde os comboios apitam e desaparecem. Os caminhos-de-ferro. Os comboios também não podem fugir deles. Apitam e desaparecem. Rodo a torneira, encosto o chuveiro ao corpo, deixo-me ficar debaixo da água a correr. Ainda não estou em mim. Não sei se posso acreditar que os três deuses estiveram em minha casa, que passaram aqui a noite de ontem, que me deixaram aquele dinheiro todo. Só porque lhes dei abrigo. Abrigo, mais nada. Os três apertados na minha cama, eu enroscada na poltrona, as luzes apagadas, pus-me a fingir que dormia para os deixar à vontade, mas claro que não consegui pregar olho, só pensava, os deuses escolheram-te, escolheram-te, a ti, Mónica, e o coração quase explodia. Fiquei a vê-los abraçados uns aos outros, distinguia-lhes os corpos, ouvia-os segredar, nalgumas alturas até se desentenderam. Escapoume uma palavra ou outra mas consegui ouvir quase tudo. Afinal não me tinham escolhido, tinha sido o Canivetes que os guiara de casa em casa, mas toda a gente os enxotara. Atarefadas nas suas vidas, não abriam a porta, ou se abriam não tinham vagar para ouvir o Canivetes, muito menos para acreditar que ele lhes trazia três deuses que precisavam de um teto para passarem a noite. Uma coisa era acreditarem nele quando queriam ouvir-lhe as histórias, se se acreditar que uma história é verdadeira, a história entretém mais, mas se ao acreditar se fica obrigado a fazer alguma coisa, é melhor descrer. Ninguém queria receber estranhos em casa, e é fácil descrer que três viajantes que batem à porta ao princípio da noite sejam três deuses. Tanto mais que de quase nada têm servido os deuses nestes tempos de miséria, poucas são as pessoas que querem saber deles. E se for verdade que vai rebentar uma guerra no norte, ainda fica tudo pior. O Canivetes garante que sim. Também garantia que os deuses viriam e vieram. Talvez os miseráveis se estejam a revoltar mesmo. Não queria deixar-me adormecer mas adormeci. Comecei a sonhar e os três deuses também estavam no meu sonho. Não sei distinguir o que ouvi no sonho do que ouvi na realidade. Andavam por aqui à procura de boas almas. De cada vez que julgavam ter encontrado uma, logo percebiam que se tinham enganado. Mesmo em relação ao Canivetes que tinha sido tão prestável e os tinha acompanhado de casa em casa, pouco tempo bastou para se aperceberem como ele é mentiroso e trapaceiro. Por isso estavam de pé atrás em relação a mim, eu própria lhes tinha dito que não conseguia ser boa, com as dificuldades por que passava. O primeiro deus sugeriu que me ajudassem para poderem averiguar se eu era boa ou não. O segundo deus argumentou que a bondade tem de existir mesmo com dificuldades,