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Por cima a lua encolhe-se em quarto minguante,
mas lá em baixo estica-se metálica pelos carris,
quatro riscos brilhantes, lado a lado, a direito até à
curva ao fundo onde os comboios apitam e
desaparecem. Os caminhos-de-ferro. Os comboios
também não podem fugir deles. Apitam e
desaparecem. Rodo a torneira, encosto o chuveiro
ao corpo, deixo-me ficar debaixo da água a correr.
Ainda não estou em mim. Não sei se posso
acreditar que os três deuses estiveram em minha
casa, que passaram aqui a noite de ontem, que me
deixaram aquele dinheiro todo. Só porque lhes dei
abrigo. Abrigo, mais nada. Os três apertados na
minha cama, eu enroscada na poltrona, as luzes
apagadas, pus-me a fingir que dormia para os
deixar à vontade, mas claro que não consegui
pregar olho, só pensava, os deuses escolheram-te,
escolheram-te, a ti, Mónica, e o coração quase
explodia. Fiquei a vê-los abraçados uns aos outros,
distinguia-lhes os corpos, ouvia-os segredar,
nalgumas alturas até se desentenderam. Escapoume
uma palavra ou outra mas consegui ouvir quase
tudo. Afinal não me tinham escolhido, tinha sido o
Canivetes que os guiara de casa em casa, mas toda
a gente os enxotara. Atarefadas nas suas vidas, não
abriam a porta, ou se abriam não tinham vagar para
ouvir o Canivetes, muito menos para acreditar que
ele lhes trazia três deuses que precisavam de um
teto para passarem a noite. Uma coisa era
acreditarem nele quando queriam ouvir-lhe
as histórias, se se acreditar que uma história é
verdadeira, a história entretém mais, mas se ao
acreditar se fica obrigado a fazer alguma coisa, é
melhor descrer. Ninguém queria receber estranhos
em casa, e é fácil descrer que três viajantes que
batem à porta ao princípio da noite sejam três
deuses. Tanto mais que de quase nada têm servido
os deuses nestes tempos de miséria, poucas são as
pessoas que querem saber deles. E se for verdade
que vai rebentar uma guerra no norte, ainda fica
tudo pior. O Canivetes garante que sim. Também
garantia que os deuses viriam e vieram. Talvez os
miseráveis se estejam a revoltar mesmo.
Não queria deixar-me adormecer mas adormeci.
Comecei a sonhar e os três deuses também
estavam no meu sonho. Não sei distinguir o que
ouvi no sonho do que ouvi na realidade. Andavam
por aqui à procura de boas almas. De cada vez que
julgavam ter encontrado uma, logo percebiam que
se tinham enganado. Mesmo em relação ao
Canivetes que tinha sido tão prestável e os tinha
acompanhado de casa em casa, pouco tempo
bastou para se aperceberem como ele é mentiroso
e trapaceiro. Por isso estavam de pé atrás em
relação a mim, eu própria lhes tinha dito que não
conseguia ser boa, com as dificuldades por que
passava. O primeiro deus sugeriu que me
ajudassem para poderem averiguar se eu era boa
ou não. O segundo deus argumentou que a
bondade tem de existir mesmo com dificuldades,