Fluir nº 5 - junho 2020 - | Page 62

62 Também a ele devemos este privilégio, na verdade: ao progresso. Hoje, com a minha mulher e os meus cães, com o meu jardim e o meu pomar, com os meus livros e os meus leitores, com os meus amigos – hoje, sou um homem feliz. Quando é que eu teria usado em público essas palavras, “um homem feliz”, nos tempos de Lisboa? Mesmo que fosse realmente feliz: que vergonha teria sido usar tais termos – que falta de gosto, que irresponsabilidade... Além do mais, desde quando a felicidade produziu literatura? Talvez nunca, com efeito. Acontece que literatura é memória. E eu conservo a memória da infelicidade e da solidão. Conservo as impressões, conservo as histórias, conservo as personagens, conservo os lugares. Sobre eles escrevo também, à distância no espaço e no tempo. A distância tornou-se o mais negligenciado dos bens, mas nunca para um escritor. Inclusive – se calhar até principalmente – para um escritor a quem continua a acalentar a ideia de que o esperam noutro lugar (como um dia, tornando a partir, o acalentará a ideia de que o esperaram no lugar actual). O regresso a casa. Agora que torno a pensar nele, talvez já nem seja bem um tema, e sim uma linguagem. Não creio que tenha esgotado ainda a minha relação com ela. Mas, entretanto, celebro este prémio porque é meu e também porque é dos Açores. Porque distingue um livro escrito por um açoriano, sobre os Açores, nos Açores. Há mais de duas décadas que a literatura das minhas ilhas, que tantos prosadores e poetas e ensaístas deram a Portugal e à lusofonia, não tinham o privilégio de integrar o palmarés destes galardões. Por isso, se me permitem, levo este comigo e partilho-o com os meus camaradas e amigos, vivos e mortos, a quem ficámos a dever (ou continuamos a dever) reconhecimentos como este que agora me dão a mim. Romancistas como Daniel de Sá, Álamo Oliveira ou Madalena Férin; poetas como Emanuel Félix, Urbano Bettencourt ou Emanuel Jorge Botelho; diaristas como Fernando Aires, ensaístas como Vamberto Freitas e tantos, tantos outros criadores (alguns muito mais velhos, outros até já mais jovens do que eu) de que Antero, Nemésio, Natália, João de Melo ou Onésimo Teotónio Almeida ficaram – aliás, com justiça – como os rostos mais visíveis: a todos eles devemos tanto a definição de uma identidade açoriana como o contributo das ilhas para o inestimável acervo da literatura portuguesa. Partilho este prémio com eles e partilho-o com os outros também, os não escritores: todos os açorianos, e em particular os homens e mulheres que desfilam nos dois volumes deste diário que aqui é distinguido. Os que desfilam ainda vivos, os que desfilam já mortos e os que, tendo desfilado vivos, passaram entretanto de uma categoria à outra, como ainda há dias aconteceu com Hermínio Machado, o taxista mais asseado que alguma vez